Chamados a construir a "Civilização do Amor"

2° ENCONTRO INTERNACIONAL DOS RESPONSÁVEIS REGIONAIS
Roma, 24-29 de Janeiro de 2009


Chamados a construir a “Civilização do Amor”
Bartolomeo Sorge S.J. – Rome, 27 Janeiro 2009
 
 
 
O terrorismo islâmico ensanguenta o mundo em nome de Deus; os Estados Unidos teorizam e praticam a “guerra preventiva”; a humanidade parece encaminhada para um terrível choque de civilizações; na sequência dos crescentes fluxos migratórios, explodem fortes tensões sociais nas nossas cidades; as inteligências e as consciências são desorientadas pelo relativismo moral e pelo ateísmo prático; o “pensamento único”, hoje dominante, leva a um individualismo e a um egoísmo exacerbados.
 
Neste contexto cultural e social, era necessária toda a coragem profética de Bento XVI para recordar à Igreja o dever de continuar a anunciar que Deus é amor e que a paz só se pode construir sobre a justiça e a caridade: “Num mundo em que ao nome de Deus se associa, às vezes, a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência – escreve o Papa –  esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós”1.
 
Depois do Concílio Vaticano II, Paulo VI foi o primeiro a insistir na necessidade de uma nova civilização do amor, em que a justiça fosse integrada e sublimada pela caridade: “Se, efetivamente, para além das regras jurídicas, falta um sentido profundo do serviço do outro, mesmo a legalidade perante a lei poderá servir de álibi para flagrantes discriminações, para se manterem explorações e para um desprezo efetivo” (Octogésima adveniens [1971] 23). Isto – continuava o Papa Montini – é confirmado pelas contradições muitas vezes dramáticas do mundo moderno: “As relações de força jamais estabeleceram de fato a justiça de maneira duradoura e verdadeira […]. O uso da força, de resto, suscita da outra parte o pôr em prática forças adversas, donde um clima de lutas que dá azo a situações extremas de violência e a abusos” (ibid., nº 43). Por isso, deve ser prioritário o compromisso por uma civilização do amor.
 
João Paulo II desenvolve o ensinamento de Paulo VI: “Uma pergunta interpela profundamente a nossa responsabilidade: que civilização se imporá no futuro do planeta? Com efeito, depende de nós o triunfo da civilização do amor, como Paulo VI gostava de lhe chamar, ou a civilização – que mais corretamente se deveria chamar ‘incivilização’ – do individualismo, do utilitarismo, dos interesses opostos, dos nacionalismos exasperados e dos egoísmos arvorados em sistema”; e conclui: “A Igreja sente a necessidade de convidar todos os que se interessam de verdade pelo destino do homem e da civilização a unirem os seus recursos e o seu esforço, para construir a civilização do amor” (Angelus, 13 de fevereiro 1994).
 
O Papa Wojtyla já tinha abordado este tema na encíclica Dives in misericórdia (1980): “A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor, plasmar a vida humana nas suas várias dimensões” (nº 12). A justiça – concluía – diz “compensação”, mas só o amor e o perdão fazem com que a compensação seja “digna do homem” (cf. ibid,, nº 14).
 
Bento XVI, na encíclica Deus caritas est (2005), vai mais além. O Papa Wojtyla tinha insistido no fato de que Deus age por amor; o Papa Ratzinger transfere a tônica do “agir” para o próprio “ser” de Deus: Deus age sempre por amor, porque é amor. Assim, depois de ter feito a distinção entre o ágape e o eros (isto é, entre o amor primeiro, totalmente gratuito e desinteressado, e o amor segundo, que não exclui a autossatisfação) mostra que em Deus o amor é uma realidade única, eros e ágape integram-se: da mesma maneira, amor do homem e amor de Deus, filantropia e caridade, razão e fé, justiça e perdão, estão destinados a encontrar-se e a integrar-se na civilização do amor.
 
A crise é grave. O fosso entre sociedade civil e instituições democráticas alargou-se desmedidamente. Alastra a “antipolítica”, e a classe política passa a ser designada com o desprezível nome de “casta”. Entrou em crise a democracia representativa, aquela que nos demos depois da segunda guerra mundial e que permitiu que tantos países se modernizassem.
 
Que fazer para sair das atuais dificuldades? É tempo de reagir à crise para construir uma “democracia participativa” mais madura. Para isso pode ser útil realizar três passos:
1) antes de mais, é necessário ter em conta a natureza e as dimensões da grave crise em que nos debatemos;
2) em segundo lugar, ver qual é hoje o papel dos cristãos (ad extra) na sociedade;
3) finalmente, por outro lado, qual é o papel dos fiéis leigos (ad intra) na Igreja de hoje, à luz do Concílio Vaticano II.
 
1. Natureza e dimensões da crise atual
 
Há que dizer desde já que a crise da democracia representativa é um aspecto da crise de cultura e de civilização mais ampla que caracteriza esta longa transição da época moderna para a época pós-moderna. Aplicando os instrumentos conceituais que a antropologia cultural nos fornece, devemos dizer que estamos vivendo uma crise não simplesmente conjuntural, mas de natureza estrutural.
 
A crise conjuntural é devida à alteração dos equilíbrios internos da sociedade, mas sem variações significativas do quadro geral da cultura e dos valores, nos quais se fundam as instituições que suportam uma determinada civilização. Enquanto resistirem a cultura e os seus valores, resistem as instituições que nela se fundam (a família, a escola, o trabalho, o sistema político…); é claro que os equilíbrios se renovam a cada mudança de geração, mas mantêm-se no interior do mesmo quadro de valores, da mesma civilização, que pode durar muito tempo. Trata-se de uma crise de natureza conjuntural.
 
Quando, pelo contrário, se transformam a cultura e os valores em que se estabelece o equilíbrio institucional, então a crise torna-se estrutural, as instituições já não aguentam e têm de ser reformadas e repensadas. Acaba uma civilização e começa outra. A crise estrutural é fundamentalmente uma crise de sentido da vida. Hoje a crise é justamente de natureza estrutural: acaba a civilização industrial, que durou mais ou menos trezentos anos, e nasce a civilização pós-moderna ou tecnológica; entrou em crise a cultura anterior com os seus valores. Acaba uma época e abre-se uma nova. A atual crise das instituições (familiares, laborais, escolares, de participação política como os partidos…) não é só conjuntural, mas estrutural, porque é o próprio sentido da vida que está em crise.
 
Bento XVI sublinha isto mesmo: “Devido à influência de fatores de ordem cultural e ideológica, a sociedade civil e secular de hoje encontra-se numa situação de perturbação e de confusão: perdeu-se a evidência originária dos fundamentos do ser humano e da sua ação ética, e a doutrina da lei moral natural encontra-se com outras concepções que são a sua direta negação. Tudo isto tem enormes e graves consequências na ordem civil e social”2.
 
Por estas razões de fundo entrou em crise a democracia representativa, que muitos bons frutos produziu. Em certa medida, é uma crise de crescimento, não desprovida, porém, de aspectos muito negativos. Hoje, os cidadãos já não confiam nos partidos e nas instituições democráticas; duvidam que eles sejam capazes de defender a segurança dos cidadãos, de garantir o bem estar a todas as camadas sociais, de libertar os territórios do país dominados pelas máfias, de assegurar a rapidez da justiça e a certeza da pena, de oferecer serviços sociais que funcionem, de elaborar normas ficais justas. Numa palavra, a chamada “república dos partidos” acabou, não só porque decapitada por Tangentopoli*, mas também porque, devido à profunda alteração cultural que se seguiu ao fim das ideologias, a velha forma-partido ideológica já não permite uma verdadeira participação dos cidadãos na elaboração da política nacional (cf. Constituição [Italiana], art. 49). Já não chega votar uma vez de cinco em cinco anos! A vida democrática foi reduzida a engenharia administrativa e a procura do poder pelo poder; os velhos partidos acabaram por descurar a necessidade de relações humanas, interpessoais e sociais, as quais têm amadurecido nos cidadãos. Hoje a sociedade civil cresceu, já não aceita que o bem dos cidadãos mais desfavorecidos ou marginalizados dependa apenas da benevolência do Estado que intervém na redistribuição da riqueza produzida (Estado social); exige que os cidadãos participem responsavelmente na vida política e sejam ativamente incluídos nos processos de produção e de redistribuição da riqueza.
 
Que fazer para passar à “democracia deliberativa” ou participativa?
 
É necessário impedir que a política fique nas mãos da “casta”, isto é, dos representantes eleitos pelo povo, mas escravos de poderes fortes ou de grupos de interesses, já sem referência à vontade dos eleitores e à custa do bem comum: é indispensável que a comunidade civil se reaproprie dessa função política, que demasiadas vezes delegou exclusivamente aos “profissionais” deste compromisso na sociedade. “Não se trata de superar a instituição ‘partido’, que continua a ser essencial na organização do Estado democrático, mas de reconhecer que se faz política não só nos partidos, mas também fora deles, contribuindo para um desenvolvimento global da democracia com o assumir de responsabilidades de controle e de estímulo, de proposta e de atuação de uma participação real e não apenas proclamada”3.
 
Todavia, é necessário ter atenção a que o discurso sobre a ‘democracia deliberativa’, por sua vez, não se reduza apenas ao aspecto pragmático e funcional, ou seja, à necessidade de inventar novas técnicas de diálogo e de “inclusão” dos cidadãos nas decisões, mas descurando a parte alicerçante ou dos valores em que a nova forma de democracia se deve apoiar para ser sólida. Para “reconstitucionalizar” o Estado, para passar a uma “democracia deliberativa”, efetivamente participada, é necessário sobretudo uma nova cultura da participação, que reforce os pilares corroídos da democracia representativa. Quais são os elementos fundamentais desta cultura?
 
2. Papel dos fiéis leigos na sociedade (ad extra)
 
Trata-se de ultrapassar a visão antropológica neoliberal, utilitarista e individualista, que está na origem do relativismo ético que pôs em crise a democracia representativa4. De fato, o “pensamento único” neoliberal dominante corroeu os pilares fundamentais da democracia representativa: a pessoa (reduzindo-a a “indivíduo”), a solidariedade (reduzindo-a a “legalismo formal”), a racionalidade (reduzindo-a a “laicismo”). Por isso, o esforço que todos devemos fazer é o de fazer assentar a nova “democracia deliberativa” ou participativa numa nova cultura política, passando: a) do indivíduo à pessoa integral; b) do legalismo formal a uma verdadeira solidariedade fraterna; c) do laicismo a uma laicidade positiva.
 
A) Do indivíduo à pessoa. O neoliberalismo funda-se numa visão “débil” da pessoa humana, entendida como indivíduo; tal concepção lesa antes de mais o próprio conceito de “pessoa”, chegando a negar que todo o indivíduo seja pessoa, como no caso de quem não fosse capaz de relações normais, devido a malformações genéticas.
 
Na realidade, o homem vale por aquilo que é, e não apenas por aquilo que tem ou por aquilo que faz. O homem merece amor e respeito porque vive, não porque possui. A sua dignidade está ligada justamente ao fato de ser pessoa. Por conseguinte, enquanto viver, todo o homem conservará sempre a sua honorabilidade; mesmo que seja pobre ou doente, mesmo que erre ou seja delinquente. A pessoa humana nunca perde a sua grandeza natural, e ninguém lha pode tirar. O homem permanece sempre o princípio e o fim da sociedade civil. Esta é a razão pela qual – como observa o Concílio Vaticano II – pelo menos em princípio, “tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto existe um acordo quase geral entre crentes e não crentes”5. Mas a dificuldade nasce quando se trata de esclarecer a origem e o fundamento da dignidade da pessoa. Dão-se muitas explicações. Todavia – como a história demonstra – nenhuma concepção puramente imanente do homem consegue fundamentar de modo absoluto a dignidade e a existência de direitos inalienáveis. De cada vez que se nega ou se ignora a origem transcendente da pessoa, cai-se no relativismo e o homem destrói-se. A raça, a cultura, a saúde, o poder, o sucesso, o dinheiro ou qualquer outra razão imanente nunca poderão fundamentar o valor primário da pessoa.
 
Daqui decorre o papel fundamental dos cristãos na atual crise da sociedade. Com efeito, a revelação cristã ajuda, revelando o homem ao homem. De fato, “a Sagrada Escritura – acrescenta o Concílio – ensina que o homem foi criado ‘à imagem de Deus’, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as criaturas terrenas, para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus”6. Por outras palavras, a pessoa humana possui – ao contrário de todos os outros seres vivos – uma dignidade transcendente e direitos inalienáveis, porque foi criada “à imagem e semelhança” de Deus (Gn 1,26).
 
B) Da solidariedade à fraternidade. O segundo pilar da democracia representativa, entendido de forma redutora pelo neoliberalismo, é o conceito de “solidariedade”. De fato, segundo a concepção individualista da pessoa, cada um é livre de escolher e de fazer o que quiser: o único limite é o respeito pela liberdade dos outros, e o único princípio de autoridade e de verdade é a vontade da maioria. Não existem uma verdade pressuposta e uma norma ética transcendentes que possam impedir a livre autodeterminação do indivíduo.
 
A própria história, contudo, mostra que uma liberdade sem limites e sem qualquer norma moral leva à autodestruição da própria liberdade e da solidariedade. Os valores não dependem da vontade livre de cada homem nem de maiorias provisórias e mutáveis; não é o Estado que os cria e os decide. Eles precedem a livre organização da sociedade; estão inscritos na consciência de cada homem e, enquanto tal, são ponto de referência normativa para a própria lei civil. Tarefa do Estado é defendê-los e coordená-los em vista do bem comum, tomando-os como fundamento do ordenamento democrático. Por isso, também João Paulo II observava: “Se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as ideias e as convicções podem facilmente ser instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores torna-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra”7. O sistema democrático é apenas um instrumento e, como tal, recebe a sua moralidade dos fins ao qual serve.
   
Por isso, a concepção iluminista de liberdade altera o modo de se entender a legalidade, ou seja, o conceito de solidariedade, as relações dos cidadãos entre si e com o estado. A legalidade não pode consistir na mera observância formal das regras em sentido individualista, mas é intrinsecamente social. (Ver o exemplo do semáforo vermelho.)
   
De fato, a sociedade é uma comunidade de pessoas em relação umas com as outras, não é um rebanho de indivíduos anônimos ao lado uns dos outros, em que cada um pensa unicamente em si: não há liberdade pessoal sem responsabilidade social. O bem comum não é a soma total dos bens individuais, mas é o bem de todos e de cada um. “A natureza social do homem – observa o Concílio – torna claro que o progresso da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade estão em mútua dependência. Com efeito, a pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contato com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com seus irmãos”8.
 
Mais uma vez, o papel dos cristãos é determinante. A revelação cristã, mais uma vez, ajuda. É necessária a solidariedade, mas a pura legalidade só por si não chega: “Em nome de uma suposta justiça (por exemplo, histórica ou de classe), por vezes aniquila-se e mata-se o próximo, priva-se o próximo da liberdade e se o despoja dos elementares direitos humanos. A experiência do passado mostra que a justiça por si só não basta e que, antes de mais, pode levar à negação e ao aniquilamento de si próprio, se não se permitir que aquela força mais profunda que é o amor modele a vida humana nas suas várias dimensões”9.
 
C) Do laicismo a uma “laicidade positiva”. Finalmente, o terceiro pilar da democracia representativa – a racionalidade, tornada “laicismo” – está hoje em discussão.
 
Por uma lado, a história avançou, mas também a Igreja avançou: a demonstração histórica da importância decisiva da consciência religiosa na luta contra as injustiças e em favor da paz andou pari passu com o fato de a Igreja ter abandonado os velhos esquemas apologéticos e com o reconhecimento de que a democracia laica é o melhor sistema de governo.
 
Isto levou também o Estado laico a superar as antigas desconfianças e a reconhecer a importância social da religião. Quem poderá ainda defender que a fé é um fato puramente privado e sem qualquer consequência social, diante da contribuição que a consciência religiosa teve na queda do muro de Berlim, no resgate de muitos povos latino-americanos, na luta contra a máfia?
 
Por outro lado, também a Igreja avançou. O Concílio Vaticano II reconheceu a laicidade como um valor. De fato – explica a constituição Gaudium et spes – as realidades temporais têm um valor intrínseco, têm finalidades, leis e instrumentos próprios, que não dependem da revelação sobrenatural: “Em virtude do próprio fato da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte”10. Assim, para a Igreja, a laicidade não é um acidente histórico, mas tem verdadeiramente um fundamento teológico.
 
A conclusão é que razão e religião não são alternativas, mas complementares. Esta reflexão da noção de laicidade, imposta pela evolução dos tempos e das ideias, é confirmada por dois casos emblemáticos: o Acordo de revisão da Concordata lateranense entre a Santa Sé e a República Italiana (18 de Fevereiro 1984) e o Tratado constitucional europeu (assinado em Roma a 29 de Outubro 2004, agora substituído pelo Tratado de reforma da União, assinado em Lisboa em Dezembro 2007)11. Assim, a religião já não é considerada um fenômeno privado, e o Estado laico já não a pode ignorar.
 
Na sociedade pluricultural e pluriétnica, o problema de encontrar uma via de encontro no respeito pelas diversidades tornou-se inadiável e urgente. Só uma laicidade positiva permite o encontro entre tradições diferentes, no respeito pela identidade de cada uma. A nova laicidade, entendida já não como oposição entre separados, mas como colaboração entre diferentes, implica que, sem renunciar à sua própria identidade, se procurem em conjunto pistas concretas para realizar o maior bem comum possível numa dada situação, conscientes das necessárias mediações a realizar.
 
Neste ponto estão de acordo Sarkozy e Bento XVI. O presidente da França laica falou disso, pela primeira vez, por ocasião da tomada de posse do canonicato honorário de São João de Latrão (20 de Dezembro 2007): “A laicidade – disse em Roma – afirma-se como uma necessidade e uma oportunidade. Tornou-se uma condição da paz civil. […] É chegado o momento em que, num mesmo espírito, as religiões, em particular a religião católica que é a nossa religião majoritária, e todas as forças vivas do país olhem juntas o que está em jogo para o futuro […]. Na república laica, o homem político […] não deve decidir em função de considerações religiosas. Mas importa que a sua reflexão e a sua consciência sejam iluminadas especialmente pelas opiniões que se referem a normas e convicções livres das contingências imediatas […]. É por isso que faço um apelo a uma laicidade positiva, ou seja, a uma laicidade que, velando pela liberdade de pensamento, de crer ou de não crer, não considera as religiões como um perigo, mas antes como uma vantagem”.
 
Em Paris, um ano mais tarde, o Presidente francês retomou este discurso: “É legítimo para a democracia e respeitoso para com a laicidade – disse – dialogar com as religiões. Estas, e em particular a religião cristã, com a qual partilhamos uma longa história, são patrimônio da reflexão e do pensamento, não só sobre Deus, mas também sobre o homem, sobre a sociedade e até sobre essa preocupação hoje central, que é a natureza e a proteção do ambiente. Seria uma loucura privar-nos das religiões, seria uma falta contra a cultura e contra o pensamento. É por isso que apelo mais uma vez a uma laicidade positiva. Uma laicidade que respeite, uma laicidade que reúna, uma laicidade que dialogue. E não a uma laicidade que exclua e que denuncie. Nesta época em que a dúvida e o fechar-se sobre si mesmo põem as nossas democracias diante do desafio de responder aos problemas do nosso tempo, a laicidade positiva oferece às nossas consciências a possibilidade de chegar a um intercâmbio, muito além das crenças e dos ritos, sobre o sentido que queremos dar à nossa existência. A procura de sentido”.
 
Por sua vez, Bento XVI, no discurso no Eliseu (12 de Setembro 2008), retomou o tema da necessária colaboração entre católicos e laicos. “Neste momento histórico – disse o Papa – em que cada vez mais as culturas se entrecruzam, estou profundamente convencido de que uma nova reflexão sobre o verdadeiro significado e sobre a importância da laicidade é cada vez mais necessária. É, de fato, fundamental, por um lado, insistir na distinção entre o âmbito político e o religioso, a fim de proteger tanto a liberdade religiosa dos cidadãos como a responsabilidade do Estado para com eles e, por outro lado, adquirir uma consciência mais clara da insubstituível função da religião para a formação das consciências e do contributo que ela pode dar, juntamente com outras instâncias, para a criação de um consenso ético fundamental na sociedade”12..
   
A laicidade positiva, com o diálogo que implica, pode causar problemas, sobretudo nos católicos, chamados a inspirar as escolhas políticas em exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis. Contudo, é a própria natureza da arte política que não permite que essas exigências absolutas se traduzam imediatamente em leis, mas impõe a necessária gradualidade exigida pelas situações concretas. Revela-o o Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “O fiel leigo é chamado a divisar, nas situações políticas concretas, os passos realisticamente possíveis para dar atuação aos princípios e aos valores morais próprios da vida social. […] a fé nunca pretendeu manietar num esquema rígido os conteúdos sócio-políticos, bem sabendo que a dimensão histórica em que o homem vive impõe que se admita a existência de situações não perfeitas e, em muitos casos, em rápida mudança”13.
 
Por conseguinte, a colaboração política dos católicos como parceiros de orientação cultural diferente deve ser imposta laicamente e no respeito pelas regras democráticas, sem com isso comprometer a sua identidade e a coerência com os valores inspiradores. Este encontro no plano da laicidade é a passagem obrigatória à democracia deliberativa.
 
Ao mesmo tempo, os cristãos, enquanto na política se comprometem a respeitar plenamente a laicidade e as regras democráticas, procurando o maior bem concretamente possível no diálogo com os homens de boa vontade, nunca renunciarão a testemunhar a força profética e crítica do Evangelho.
 
Ora, esta passagem da democracia representativa à democracia deliberativa não é um dado adquirido. Nenhum de nós está preparado. É por isso que o discurso sobre a formação é essencial. Tanto mais que a “questão social” se tornou “questão antropológica”, cujos problemas gravíssimos – os chamados “eticamente sensíveis”, juntamente com os da paz, da salvaguarda da criação, da convivência multiétnica e multicultural – exigem o encontro e a colaboração de todos os homens de boa vontade, qualquer que seja a sua raça, a sua cultura, a sua religião.
 
Trata-se de realizar um “neopersonalismo social e laico”, que permita ultrapassar as contraposições, para fazer unidade na diversidade, mantendo cada um as suas raízes e a sua história, mas superando-se numa visão superior comum. Trata-se de passar da pessoa entendida como indivíduo à pessoa entendida em sentido integral, da solidariedade reduzida a mera realidade relacional à fraternidade e do laicismo entendido como separação e contraposição à laicidade entendida como distinção na cooperação para o bem comum. Numa palavra: da democracia representativa à democracia deliberativa.
 
No entanto, não basta repensar os pilares teóricos da “democracia representativa”, hoje corroídos; mas, ao mesmo tempo, é preciso ter a coragem de enfrentar os problemas concretos, realizando as necessárias reformas que permitam a participação subjetiva dos cidadãos, para que estes se sintam pessoalmente envolvidos nas decisões que contam e não sejam apenas consultados. Mas, para isso, é necessário formar-se.
 
3. Papel dos fiéis leigos na Igreja (ad intra)
 
À nossa geração cabe a grave tarefa do discernimento. Os modelos de ontem já não servem, os de amanhã ainda não existem. É preciso “inventar” caminhos novos de participação. É um verdadeiro esforço – perigoso até, porque se podem cometer erros – mas exaltante. O pior é que esta crise epocal de civilização nos apanhou desprevenidos, não a vimos vir. Todos nos encontramos impreparados para a enfrentar. Daí a absoluta prioridade da educação e da formação, tanto mais necessária quanto os católicos hoje estão divididos relativamente não à necessidade de prestar ao País um serviço cultural, mas ao modo de o prestar.
 
Como devem a Igreja e os católicos colocar-se face às graves interrogações que a presente situação implica? A Igreja não pode desinteressar-se desta questão – defende o Papa: “não pode eximir-se de se interessar pelo bem de toda a comunidade civil, na qual vive e trabalha, e de lhe oferecer o seu contributo peculiar formando nas classes políticas e empresariais um genuíno espírito de verdade e de honestidade, visando à busca do bem comum e não do proveito pessoal”14. Por isso, Bento XVI, na 45ª Semana Social dos católicos italianos, reforçou o que já tinha dito na encíclica Deus caritas est: “o dever da Igreja é mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificação da razão e para o despertar das forças morais”; mas, ao mesmo tempo, a par do contributo mediato, específico da Hierarquia, é dever dos fiéis leigos agirem “de forma imediata”, para uma ordem justa na sociedade; portanto, “como cidadãos do Estado, compete-lhes participar pessoalmente na vida pública e, no respeito pelas legítimas autonomias, cooperar para configurar retamente a vida social, juntamente com todos os outros cidadãos, segundo as competências de cada um e sob a sua própria responsabilidade autônoma”15. Numa palavra: esta é a hora dos leigos. É sua missão servir de medianeiros, em termos culturais, políticos, econômicos e sociais, da luz com que o Evangelho e o ensino da Igreja iluminam a antropologia.
 
De fato, algumas pessoas inspiram-se no método dedutivo: pensam que se deva partir da reafirmação dos valores e dos princípios “não negociáveis” para dialogar “sem complexos de inferioridade com as dinâmicas culturais do nosso tempo” (assim, por exemplo, se lia no documento preparatório da 45ª Semana Social), propondo-se de forma mais ou menos velada restabelecer na Itália uma forma de liderança cultural católica, depois do fim dessa política. Outras, porém, sem nada retirar à importância do testemunho e do anúncio corajoso dos valores do Reino de Deus, pensam que no plano operativo se deva seguir o método indutivo: partir antes da partilha desinteressada dos problemas materiais, morais e culturais das pessoas, para juntos prosseguir gradualmente para a verdade total, confiando na ajuda do Espírito Santo, que abre os olhos da mente e do coração. Este é o método de João XXIII (ver, julgar, agir), feito seu pelo Concílio (Gaudium et spes), e codificado por Paulo VI na carta apostólica Octogésima adveniens, nº 4.
 
Importa esclarecer esta relação entre diálogo e testemunho da caridade. Não é só uma questão de método, ainda que seja verdade – como escreve Bento XVI na encíclica Deus caritas est – que a caridade (logo, também a caridade cultural) “não deve ser um meio em função daquilo que hoje é indicado como proselitismo. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. […] quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja”16.
 
Hoje, em todas as partes do mundo, a questão é esta: numa situação cultural e politicamente fragmentada, os católicos serão ou não capazes de ajudar o seu país (a Europa e o mundo) a realizar a necessária unidade no respeito pela pluralidade? Serão ou não capazes de realizar juntamente com os outros uma mediação cultural que acolha o que de válido existe nas diferentes tradições, sem pedir a ninguém que renegue as suas raízes e a sua história, mas impelindo todos a uma participação democrática que ultrapasse as anacrônicas barreiras ideológicas e culturais?
 
Certamente que sim. Não só os católicos são capazes de dar esse contributo, mas hoje é este o seu dever. A isto os compromete o grande «sim» da fé, de que Bento XVI fala tantas vezes. Não é uma categoria abstrata (A fé sem obras está morta [Tg 2,26]), mas traduz-se necessariamente em testemunho desinteressado da caridade, mesmo da “caridade cultural” e da “caridade social e política”: oferecida não de forma instrumental, para impor aos outros a sua própria visão confessional, mas desinteressadamente com vista à formação de um ethos civil e laico partilhado, em torno do qual realizar a unidade na pluralidade, necessária para garantir o bem comum.
 
Por outras palavras: não basta anunciar os valores absolutos e os princípios “não negociáveis” (que devem certamente ser anunciados e testemunhados), se ao mesmo tempo não houver empenho em procurar em conjunto o bem comum possível, que passa inevitavelmente pelas regras democráticas do consenso e pelas psicológicas da gradualidade. De fato – como muito bem explicou o Cardeal Martini no discurso de Santo Ambrósio, 1998 – o bem comum não consiste numa definição filosófica abstrata, mas deve ser procurado concretamente, ajustando-o às situações históricas reais em que se age; isto significa que a sua realização deverá passar pela persuasão e pela paciência, pela progressiva e gradual afirmação dos valores, “até por duras renúncias, em nome de uma superior concórdia civil e sempre em vista a um bem mais alto”17.
 
Os princípios e os valores em si são sempre não negociáveis, mas a sua tradução histórica está sujeita às condições de tempo e de lugar, ao consenso e ao crescimento do costume e da vida política. “Mas parece – continua Martini – que, ao aceitar as leis do consenso, o cristão se sinta culpado, como se confiasse ao consenso democrático a legitimação ética dos seus valores. Não se trata de confiar ao critério da maioria a verificação da verdade de um valor, mas de assumir autonomamente uma responsabilidade relativamente ao crescimento do costume civil de todos, que é a verdadeira tarefa da ética política. Por isso, esta tarefa importa de modo particular à Igreja na sua ação, como semente e fermento na sociedade”18.
 
Assim, aplica-se também ao exercício da “caridade cultural” o que Bento XVI diz mais em geral na encíclica Deus caritas est: “O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1Jo 4,8) e torna-se presente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar”19.
 
* * *
Em conclusão, hoje já não é tempo de pensar na hegemonia de uma cultura política (nem sequer da “católica”) que se imponha a outras, mas de realizar a participação de todos na vida democrática, que abra as várias tradições culturais a uma nova dimensão transcendente, sem lhes cortar as raízes. Mas para isso é necessário formar-se, educar-se na política.
 
Para todos, trata-se de fazer a síntese entre a atenção à dimensão ética e religiosa (própria do personalismo da tradição social cristã, expressa pela Doutrina Social da Igreja), a insistência na solidariedade (própria da tradição socialista) e a exigência de laicidade (própria da tradição liberal-democrática). Por que é que não haveríamos nós hoje de conseguir aprofundar em conjunto o significado de valores (liberdade, igualdade, solidariedade, paz, dignidade da pessoa) que são partilhados pela consciência civil contemporânea e impregnam também as grandes Cartas internacionais dos direitos humanos?
 
Para os católicos, em particular, trata-se de formar numerosos políticos novos, homens e mulheres que sejam síntese entre espiritualidade e profissionalidade, capazes de testemunhar e de introduzir na vida política o que é especificamente cristão. “Quem tem responsabilidades políticas e administrativas tome a peito algumas virtudes, como o desinteresse pessoal, a lealdade nas relações humanas, o respeito pela dignidade dos outros, o sentido da justiça, a recusa da mentira e da calúnia como instrumento de luta contra os adversários, e porventura também contra quem inadequadamente se define como amigo, a força para não ceder à chantagem dos poderosos, a caridade para assumir como suas as necessidades do próximo, com clara predileção pelos últimos”20.
 
Assim, os cristãos – qualquer que seja a sua escolha partidária – são hoje chamados a dar um contributo original e essencial na busca de uma nova cultura da participação, seja a nível de reflexão teórica seja a nível operativo de testemunho e de efetivo serviço político e social. A isto os chama o dever de se empenharem, juntamente com todos os homens de boa vontade, na construção da Civilização do Amor.
 
 
 
1 Bento XVI, encíclica Deus caritas est (2005), nº 1.
2 BENTO XVI, Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional (5 Outubro 2007), em L’Osservatore Romano, 6 Outubro 2007, 5.
*Tangentopoli (lit. cidade do suborno): Termo jornalístico dos anos 90 correspondente à investigação criminal em grande escala que teve lugar em Itália no princípio dos anos 90 contra a prática generalizada de corrupção e suborno na administração pública e em círculos políticos e empresariais. Esta ação levou à queda da chamada Primeira República, com o desaparecimento do Partido da Democracia Cristã, no poder desde o fim da Segunda Guerra. (N.doT.)
3 COMISSÃO ECLESIAL JUSTIÇA E PAZ, Educare alla legalità (1991), n.17, § 580, in Enchiridion CEI, 5, p. 224.
4 BENTO XVI, na encíclica Spe salvi (2007), analisa como no Ocidente esta cultura se fundou na sequência do progresso científico e técnico, estabelecendo uma relação ambígua entre liberdade e razão (nº 16-23); e conclui: “Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef. 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo” (nº 22).
5 CONCÍLIO VATICANO II, constituição pastoral Gaudium et spes, nº 12.
6 Ibid.
7 JOÃO PAULO II, Evangelium vitae (1995), nº 70.
8 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, nº 25.
9 JOÃO PAULO II, Dives in misericordia (1980), nº 12.
10 CONCÍLIO VATICANO II, constituição pastoral Gaudium et spes, nº 36.
11 O art. 1 do Acordo de revisão diz: “A República Italiana e a Santa Sé reafirmam que o Estado e a Igreja Católica são, cada uma na sua ordem, independentes e soberanos, comprometendo-se ao pleno respeito deste princípio nas suas relações e na colaboração recíproca em favor da promoção do homem e do bem do País». Por sua vez, o art. I-52 do Tratado constitucional europeu (agora art. 16C do Tratado reformador, aprovado em Lisboa em 2007) reconhece o estatuto de que gozam no próprio país as Igrejas, associações ou comunidades religiosas (§1); assim, depois de ter admitido explicitamente o valor social da religião, dispõe que se instaurem relações estáveis de colaboração entre as instituições da União e as Igrejas, através de «um diálogo aberto, transparente e regular” (§3).
12 BENTO XVI, “Discurso no Eliseo” (12 de Setembro 2008), em L’Osservatore Romano, 13 de Setembro 2008. O Papa voltou a este assunto na audiência de 17 de Setembro 2008, dedicada à sua viagem apostólica a França: “A verdadeira laicidade – disse – não significa prescindir da dimensão espiritual, mas reconhecer que esta é radicalmente garantia da nossa liberdade e da autonomia das realidades terrenas, graças aos preceitos da Sabedoria criadora que a consciência humana sabe acolher e realizar” (L’Osservatore Romano, 18 de Setembro 2008).
13 CONSELHO PONTIFÍCIO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 568.
14 BENTO XVI, Mensagem ao Presidente da CEI por ocasião da 45ª Semana Social dos Católicos Italianos, em L’Osservatore Romano, 20 de Outubro 2007, nº 6.
15 Ibid.
16 BENTO XVI, encíclica Deus caritas est, nº 31c.
17 MARTINI C.M., “Il seme, il lievito, il piccolo gregge”, discurso para a vigília de Santo Ambrósio 1998, em AS 2 (1999) 164.
18 Ibid.
19 BENTO XVI, encíclica Deus caritas est, ibid.
20 COMISSÃO ECLESIAL JUSTIÇA E PAZ, Educare alla legalità, cit. nº 16, § 578, p. 223.