“Cuidarei para sempre de ti” (Isaías 49,15)

2° ENCONTRO INTERNACIONAL DOS RESPONSÁVEIS REGIONAIS
Roma, 24-29 de Janeiro de 2009


“Cuidarei para sempre de ti”(Isaías 49,15)
Carlo e Maria Carla Volpini – Roma, 25 Janeiro 2009
 
 
O tema da nossa intervenção é o carisma das ENS, e gostaríamos de começar recordando o que o Padre Caffarel dizia sobre o amor: “O amor humano é um mistério, ou seja, uma obra divina”.
Talvez o Padre Caffarel, ao exprimir este sentimento, tivesse presente o Livro dos Provérbios (Pr 30,18-19), um dos livros mais antigos e um dos sete chamados Sapienciais, que define como misterioso o caminho do amor entre um homem e uma mulher.
A verdade é que o padre Caffarel, diante do mistério do amor entre um homem e uma mulher, escreveu uma das suas páginas mais belas:
Deus diz: Casal cristão, tu és o meu orgulho e a minha esperança. Quando criei o céu e a terra, e no céu as grandes luzes, vi nas minhas criaturas os vestígios das minhas perfeições e achei que isso era bom. Quando cobri a terra com o seu manto de campos e florestas, vi que isso era bom, Quando criei os inúmeros animais segundo a sua espécie, vi nesses seres vivos um resplandecente reflexo da minha vida transbordante, e achei que isso era bom. De toda a minha criação elevou-se então um grande hino, solene e jubiloso, a celebrar a minha glória e as minhas perfeições. E, no entanto, em parte alguma via a imagem daquilo que é a minha vida mais secreta, mais ardente. Despertou então em mim a necessidade de revelar o melhor de mim próprio, e cheguei à minha mais bela invenção. Foi assim que te criei, casal humano, ‘à minha imagem e semelhança’, e vi que isso era muito bom. No meio deste universo em que cada criatura proclama a minha glória, celebra as minhas perfeições, tinha por fim surgido o amor para revelar o meu Amor. Casal humano, minha bem amada criatura, minha testemunha privilegiada, compreendes agora por que me és querido entre todas as criaturas, compreendes a esperança imensa que deposito em ti? Tu és portador da minha reputação, da minha glória, és para o universo a grande razão de esperança… porque és o amor.
 
O amoré, pois, o eixo em torno do qual se funda e se desenvolve todo o pensamento do Padre Caffarel sobre o carisma das Equipes de Nossa Senhora, um amor conjugal que é em si mesmo caminho de salvação, como o Padre Caffarel nos recorda com muita clareza: “A santidade do amor é o próprio amor” e “o amor de Cristo utiliza o amor humano […] para se manifestar e se comunicar a si próprio”1. Este é, pois, o carisma das ENS, carisma, palavra que significa dom do Espírito: ajudar os casais a descobrir cada vez mais, num caminho sem fim, o dom recebido da riqueza do amor sacramento vivido no matrimônio e a viver a espiritualidade conjugal como um caminho ininterrupto para a santidade. Um carisma que se centra e se desenvolve em torno de um amor humano, de uma história conjugal, de um matrimônio, um amor reflexo do amor de Deus, tal como nos foi dito no último encontro internacional em Lourdes. Um amor que é ternura infinita, mas também instinto imediato e total (Jesus, fixando nele o olhar, sentiu afeição por ele – Mc 10,21), um amor que é perdão sem reservas (Por um instante, escondi de ti a minha face, mas Eu tenho por ti um amor eterno –  Is 54,8), um amor que é fidelidade para sempre, como diz o Salmo 116: Louvai o Senhor, porque o seu amor para conosco não tem limites e a fidelidade do Senhor é eterna (Sl 116,1-2), um amor que se faz cuidado para com o outro e faz suas as palavras do Senhor: Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebê? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria, cuidarei de ti para sempre (Is 49,15). “Cuidarei de ti para sempre”: “as palavras de Isaías interrogam-nos. Talvez Isaías nos fale de uma coisa que ultrapassa até o amor; o amor por vezes é paixão que arde, instinto que obscurece a mente, sentimento que ofusca a razão. Cuidar é ternura infinita, atenção constante, espaço e dedicação sem medida”.  
 
 “Cuidado” é uma palavra que faz parte do nosso vocabulário quotidiano e que usamos milhares de vezes, dando-lhe os significados mais banais: cuido de ti = estou preocupado contigo, tem cuidado contigo = procurar estar bem. Como muitas vezes gostamos de fazer, fomos procurar ajuda na etimologia da palavra para descobrir o seu sentido mais profundo, e assim descobrimos que cura (= cuidado) tem uma estreita ligação com curius, isto é, “curioso”, e curioso é aquele que “considera com atenção mesmo coisas que não lhe dizem respeito”. Com o tempo, foi-se atribuindo a este termo “curioso” uma conotação menos positiva, e curioso passou a ser aquele que de alguma maneira se imiscui nas coisas que não lhe dizem respeito, mas o significado inicial era “aquele que considera com atenção mesmo coisas que não lhe dizem respeito”, e aqui nos parece ter um valor muito positivo, pois exprime uma capacidade de não considerarmos apenas as coisas que nos interessam, numa palavra, sermos capazes de ultrapassar o nosso olhar egoísta para abarcar as coisas, as pessoas, o mundo.
 
Desta forma, percebemos que “cuidar” é um encontro atento de intencionalidade, um acolhimento mútuo, é escutar e escutar-se, é justamente tomar em consideração, com atenção, até as coisas que não nos dizem respeito, é, segundo uma bela definição, “identificar lugares significativos a que se dirigir”.
 
Identificar lugares significativos para onde se dirigir. Nesta frase encontramos os percursos do nosso caminho de homens, de crentes, de equipistas: avançar juntos para metas e objetivos que nos esperam e que dão sentido à nossa vida. A meta última a que somos chamados é a de entrar no Amor de Deus: é este o percurso no qual pusemos as nossas vidas. Assim, ter cuidado de, cuidar de, identificar lugares significativos para onde se dirigir não quer dizer outra coisa senão identificar percursos do amor humano que nos conduzam ao Amor de Deus. Mas este Amor já nos foi dado desde o início da nossa vida; se não tivéssemos recebido todo o amor possível da parte de Deus, nenhum de nós teria sido criado, nem salvo por Cristo. Todo o amor de Deus está presente em nós desde o nascimento... a nós nos foi dada a tarefa de crescermos e de nos tornarmos pessoas “gastando” esta bagagem de amor, difundindo-a e espalhando-a à nossa volta; como o Pequeno Polegar, o menino da história, que espalhou as suas pedrinhas como sinais para encontrar o caminho de casa, assim nós devemos fazer para encontrar o caminho que poderá conduzir-nos ao nosso Criador, ao Deus que é Amor.
 
“Cuidar de” é, afinal, simplesmente dar o amor que já temos em nós, em pequenos e constantes gestos quotidianos. De resto, até humanamente, o sonho de qualquer homem é ser amado profunda, autêntica e totalmente.
 
Em nossa experiência de homens e de mulheres casados, tivemos com toda a certeza a experiência forte de amar e de nos sentirmos amados. Mas o amor é a realidade mais mutável que existe, porque o amor precisa de se fazer diferente nos diferentes momentos da vida, de assumir rostos e formas diferentes, consoante as exigências do outro que está ao nosso lado, de crescer e mudar como cada um de nós cresce e muda até ao fim. Cuidar do amor é fazê-lo crescer na partilha das escolhas, cuidar do amor é fazer-se dom contínuo de palavras que vão ao fundo e não permanecem na superfície da comunicação.
 
Alguma vez já repararam que na palavra comunicação está o termo latino munus? Este termo significa dom e, por isso, cada uma das nossas palavras deve chegar ao outro como um dom... Quantas palavras desperdiçamos, quantos dons deitamos fora...
 
Cuidar do amor é aceitar realmente a inevitável diversidade que está presente em nós e nas nossas histórias, é experimentar com olhar sereno a necessidade recíproca do perdão. Tudo isto é o que já recebemos de Cristo, que nos amou primeiro, que nos deu palavras de vida e que nos perdoou ainda antes de pedirmos perdão, tudo isto é o que devemos dar, em particular àquele ou àquela que dizemos ter desposado por amor.
 
“Recebo-te por minha esposa… recebo-te por meu esposo e prometo ser-te fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida”. Com que emoção pronunciamos o nosso sim no dia do nosso casamento, uma emoção intensa e profunda que nos deixava maravilhados face à imensidade do amor que sentíamos um pelo outro. A nossa história tinha começado sob os mais negros auspícios – demasiadas diferenças de meios de origem, de interesses, de vida quotidiana quando jovens – para termos alguma esperança de sucesso. Ninguém apostava um cêntimo em nós dois: os amigos de então apostavam em quanto tempo duraria aquele capricho recíproco, os pais estavam realmente perplexos, só nós sentíamos que não era assim, que realmente o amor se tinha apossado de nós, e ganhamos. Sim, ganhamos porque, depois de tantos anos, ainda aqui estamos juntos e não perdemos a vontade de nos tomarmos pela mão nem de procurar um espaço, de vez em quando, para um passeio a dois, não perdemos a vontade de olhar o futuro, imaginando-nos juntos e fazendo novos projetos que nos envolvam os dois.
 
Vencemos porque fomos capazes de não evitar os confrontos quando eles significavam clarificação entre nós dois: ferimo-nos, por vezes, com palavras e com gestos, mas acreditamos que a clareza fazia parte do amor; vencemos porque, mesmo quando era mais forte o apelo a uma afirmação individual relativamente ao trabalho, em família ou entre os amigos, lembramo-nos sempre de que o “nós” do nosso casal era uma realidade que devia ser protegida e salvaguardada; vencemos porque nunca nos perdemos de vista, mesmo quando compromissos vários e cansaço infinito em alguns momentos da vida nos obrigavam a afastar-nos um do outro.
 
Mas o amor de todos este anos de vida em comum mudou mil vezes de rosto: fez-se paixão, sem dúvida, mas também acolhimento e ternura face aos nossos fracassos, fez-se cumplicidade silenciosa e vital face a projetos só nossos, sustento nas horas de tristeza face a sonhos despedaçados e amizade na partilha de pensamentos e de ideais. Tu cuidaste de mim e dos meus limites, levando-me a encontrar energia para novos objetivos a realizar, cuidaste de mim, fazendo-me sentir a tua confiança nas minhas possibilidades. Acolheste o meu cansaço e os meus nervosismos, a minha preguiça e as minhas arrogâncias, as minhas fraquezas e os meus medos; não os negaste, fazendo de conta que não existiam, não os escondeste nem dos meus olhos nem dos teus, mas, pelo contrário, acolheste-os porque mesmo as muitas discussões sobre mil e uma pequenas e grandes coisas significaram “estou aqui, tu interessas-me, estou a teu lado”. Procurei fazer outro tanto contigo, tornando viva todos os dias a promessa do casamento “prometo ser-te fiel, na alegria e na tristeza, todos os dias da nossa vida” e tomei-te nos braços de noite quando não conseguias dormir, por causa dos mil pensamentos que enchiam o teu espírito e o teu coração, cuidei de ti apoiando-te no teu desejo de continuar a estudar mesmo quando os filhos já tinham chegado e o teu estudo te levava para longe de casa, cuidei de ti e da tua dor, sofrendo contigo, mas também levando-te a reagir, quando situações de família demasiado difíceis pareciam quebrar a tua capacidade de lutar.
 
Cuidamos um do outro, porque não nos esquecemos de que, para lá de cada um dos nossos sucessos, de cada uma das nossas realizações pessoais, de cada meta atingida, para nós, como para qualquer homem ou mulher que vive o matrimônio, permanece a fundamental necessidade de se sentir amado, porque este é o sentido da vida em comum. Cuidamos um do outro porque continuamos a alimentar o amor com olhares que ainda se procuram, mãos que ainda se encontram e projetos que ainda se constroem para o futuro.
 
Quanto caminho e quanto amor “gasto” em palavras e em gestos ao longo das nossas histórias conjugais! Um amor que não se gasta é um amor que se esgota e esteriliza; um amor que não vai além dos limites de si próprio para chegar a metas mais distantes é um amor que tem vida breve; um amor que não levanta o olhar para chegar às pessoas, às coisas e aos acontecimentos mais distantes, que não consegue “cuidar”, interessar-se até por coisas que não lhe dizem respeito, que não é capaz de procurar lugares significativos para onde se dirigir, é um amor destinado a centrar-se em si mesmo e talvez a extinguir-se. Neste sentido, parece-nos que a vida sabe ser, para cada um de nós, uma grande mestra, capaz de nos preparar, quase sem nos darmos conta, para a necessidade de nos tornarmos capazes de amar e de cuidar. De fato, o primeiro amor que a vida nos chama a dar é o amor aos nossos filhos, e realmente não é difícil amá-los quando, muito pequeninos, os sentimos completamente entregues a nós e capazes de preencher totalmente os nossos pensamentos, de nos fazer viver emoções especiais, de dar sentido aos nossos dias. Mas todo este amor dado e recebido é alimento para um amor maior, que somos chamados a dar quando os filhos se nos apresentam com a sua realidade de pessoas diferentes, com as suas escolhas não partilhadas, com as suas revoltas, com as suas recusas; quando exigem que, aconteça o que acontecer, cuidemos deles, mesmo se são rebeldes, contestatários, agressivos ou insolentes, ou fechados e impenetráveis, indiferentes a nós e aos problemas da vida familiar, quando, de mil e uma maneiras diferentes, repetem as palavras e os gestos de Jesus adolescente: Sua mãe disse-Lhe: “Filho, por que nos fizeste isto? Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura!”. Ele respondeu-lhes: “Porque Me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?”. Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse (Lc 2,48-50).
 
Quantas vezes também nós não entendemos e perguntamos a eles, ou talvez a nós próprios: “Filho, por que nos fizeste isto?” Mas, aconteça o que acontecer, estamos ali para cuidar deles, para cuidar das suas inquietações, dos seus insucessos, das suas carências, do seus erros, e, enquanto estamos ali ao lado deles, dando, na medida e na forma que somos capazes, o amor que temos dentro de nós, acabamos por perceber que talvez devamos dizer obrigado às lágrimas que os nossos filhos nos fazem chorar, porque, graças a essas lágrimas, tornamo-nos diferentes, crescemos na capacidade de dar o amor recebido e acumulado, amadurecemos na capacidade de amar.
 
Mas, se queremos aprofundar a reflexão sobre o carisma das ENS, temos de perceber que amar os filhos, cuidar deles em todos os momentos da vida, não pode bastar para cumprir a tarefa que temos de restituir ao Senhor todo o amor que Ele nos deu, porque uma coisa é clara: o seu dom não é uma coisa que possa ser guardada só para nós, e Ele espera a nossa restituição, espera a nossa contribuição... a isto nos chamou quando nos deu o dom da vida ou quando pôs ao nosso lado um homem ou uma mulher com quem fazer um caminho de amor. Um amor a alimentar a dois e a gastar pelos outros: este é o carisma do amor como dom espiritual a que nos chama o Padre Caffarel ao escrever, na sua Carta Mensal de 19502: A vida cristã integral não é apenas adoração, louvor, ascese, esforço de vida interior. É também serviço a Deus no lugar atribuído por Ele: família, profissão, cidade... Da mesma forma, os casais que se reúnem para se iniciar na espiritualidade, longe de procurar os meios para se evadir do mundo, esforçam-se por aprender como, a exemplo de Cristo, servir a Deus durante toda a sua vida e em pleno mundo”.
 
E prossegue: “paróquia, equipe; creches de bons cristãos. Onde está o dinamismo que compromete os jovens cristãos?… De que forma? Abstenho-me de vos responder. Um verdadeiro amor ao próximo, mais do que de paciência e de perseverança, nunca tem falta de imaginação”3.
 
Não sentem a frescura, a atualidade e a modernidade destas palavras?
 
O casal é certamente uma encruzilhada da relação, talvez o lugar decisivo de todo o modelo interpessoal de amor, o casal foi pensado e querido por Deus como imagem de amor e de transmissão da vida. Em nosso “sim”, no compromisso recíproco de nos amarmos, havia também o compromisso, talvez um imperativo ético, de nos tornarmos fecundos, de lançarmos sementes de fecundidade que pudessem fazer germinar a vida. Foi o próprio Deus que nos amou primeiro e nos mandou ser fecundos, e é na história de todos os dias que, por fé e com fé, devemos aprender a ser, também nós, fecundos do amor de Deus.
 
Os dias que temos para viver são todos marcados por rostos de homens e de mulheres que se fazem encontro; alguns destes rostos estão entre os mais familiares e próximos: os filhos, os pais, os amigos. Umas vezes, é simples amá-los ou retribuir o seu amor; outras, não tanto. Mesmo assim, amamo-los e cuidamos deles, porque são os nossos filhos, os nossos pais, os nossos amigos. E todos os outros, todos os outros cujo rosto não conhecemos, cuja voz não ouvimos, cujas ânsias, medos e solidões não conhecemos? Todos os outros são-nos realmente estranhos? Não nos dizem mesmo respeito? Não devemos cuidar deles?
 
Um dos ditos muçulmanos a respeito de Cristo4 diz: “Jesus encontrou um homem e perguntou-lhe: “Que estás fazendo?” “Consagro-me a Deus”, respondeu o homem. Jesus perguntou: “Quem cuida de ti?”. “O meu irmão”, respondeu o homem. Ao que Jesus disse: “O teu irmão tem mais devoção a Deus do que tu”.
 
Procurar Deus, fingindo não ver o homem, é uma falsidade histórica, religiosa e espiritual. Não se chega a Deus fechando os olhos às necessidades do irmão.
 
“Quem cuida de ti?”. “O meu irmão”, respondeu o homem. Jesus disse: “O teu irmão tem mais devoção a Deus do que tu”. E, se Jesus nos fizesse esta pergunta, qual seria a nossa resposta? De quem cuidamos nós?
 
As reflexões destes últimos anos, cada vez mais, têm-nos ajudado a compreender mais profundamente o que significa falar de “espiritualidade encarnada”. Talvez tenhamos chegado à maturidade da nossa fé quando tivermos aprendido a amar totalmente o outro, cada outro em quem Cristo se reflete e espera que cuidemos dele.
 
Fé e história não se opõem; pelo contrário, hoje é-nos pedido como compromisso de fecunda uma leitura sapiencial e atual da vida humana: é-nos pedido que façamos nascer à nossa volta uma cultura de igualdade, de anulação de toda e qualquer barreira entre ricos e pobres, porque o pão é um direito de todos; é-nos pedido que façamos nascer à nossa volta uma cultura de justiça, baseada no direito que todos os homens têm de ver satisfeitas as necessidades primárias da vida; é-nos pedido que façamos nascer à nossa volta uma cultura de liberdade onde quer que a liberdade esteja esquecida, anulada, negada; e é-nos pedido que façamos crescer à nossa volta uma cultura de obediência,não à lei, mas à vida, não ao Sábado, mas ao homem, não aos princípios, mas a Cristo. É-nos pedido que façamos nascer à nossa volta uma culturado amor, porque o amor alimenta a vida do homem. E então é claro: não há nada que não nos diga respeito! E o carisma do amor que somos chamados a viver deve ser vivido e “gasto” nos caminhos da humanidade, entre os homens e as mulheres que habitam a terra.
 
Durante vários anos acompanhamos moças de uma casa de acolhimento. Todas elas tinham pouco mais de dezoito anos, maiores para o Estado, muitas vezes, porém, pouco mais que crianças confusas, desorientadas que iam de ilusão em ilusão e, portanto, de erro em erro: jovens do leste chegadas à Itália com o sonho de um trabalho e de uma vida mais fácil que acabavam por cair no mundo da droga e da prostituição, moças que tinham acreditado no grande amor do homem mais velho e que depois ficavam grávidas, longe das famílias, sozinhas com os seus filhos, jovens que já não tinham rosto para ninguém, porque ninguém cuidava delas. Andrea, como outras, vinha à nossa casa aos domingos; queríamos que vivesse um dia normal, com o almoço todos juntos, com os nossos filhos e a avó, com um doce e tudo, … e que importância tinha sabermos que levava sempre alguma coisa lá de casa? ... depois desapareceu também da casa de acolhimento... dizia que ia casar-se com um policial... Estaria outra terrível desilusão reservada para ela? Outras entraram em nosso coração, como a Enza, uma siciliana de 32 anos, que ficou grávida de um homem casado e foi afastada de casa por causa da vergonha e da desonra. Mas ela, fragilíssima de personalidade, tinha-se tornado forte e determinada relativamente àquela gravidez e dizia que aquele filho era a melhor coisa que lhe tinha acontecido e nada era tão importante como tê-lo; e assim nasceu a Perla... mas a Enza dizia que Perla era o nome adequado, porque era um tesouro escondido e precioso, só dela. E depois Yocelyn, sul-americana, 19 anos, enganada e abandonada pela própria mãe, que a tinha mandado para a Itália, pondo-lhe droga na mala, e quando foi presa, mal pôs os pés no aeroporto, a mãe que devia estar à espera dela, desapareceu sem deixar rasto. A ela não importava ter sido presa, nem sequer lhe importava ter sido vítima de violência na prisão, mas não se resignava com o engano e o abandono por parte da mãe.
 
Naquela casa de acolhimento havia uma regra bem precisa para todos: não se tratava apenas de acolher, mas também de cuidar das moças presentes, cuidar delas como pessoas e não só como hóspedes de uma estrutura. E era muito bonito estar simplesmente com as jovens, sem pretender ser educadores ou professores, e tomar chá com elas à tarde em bonitas chávenas pintadas com gosto, pôr flores na mesa, para que elas não tivessem só alimento para comer, mas pudessem apreciar as coisas boas que o dia pode dar... como as flores sobre a mesa.
 
Aprendemos que o amor que o Senhor nos pede não é só acolhimento, tolerância, partilha ideal, mas exatamente este cuidar do outro para que nunca lhe falte a sua dignidade de pessoa e, sobretudo, o seu valor como criatura amada por Deus.
 
O “aqui e agora” deste encontro obriga-nos também a interrogar-nos sobre “como”, em nosso serviço de casais regionais e super-regionais, somos capazes de viver o carisma das ENS, pondo no centro do nosso serviço o amor ao outro.
 
 
Todos nós vivemos, sem dúvida, as diversas fases que acompanham o início de um serviço. Trata-se de fases progressivas, que partem da simples aceitaçãodo serviço, uma aceitação mais ou menos consciente daquilo que iremos fazer, marcada pelas dúvidas e perplexidades face às nossas capacidades, mas também pelas ideias e pelos projetos a realizar; a seguir, uma compreensãofeita de encontros com as pessoas, de reflexões sobre as coisas, de conhecimento das situações, de hipóteses de trabalho com base nas necessidades, nas riquezas e nas carências que se manifestam; depois, a fase ligada ao fato de tomar parte, no sentido de se envolver com as pessoas e com as situações e, finalmente, a fase do cuidar, que significa entrar dentro das coisas e das pessoas para partilhar com elas, para fazer unidade com elas, em que a oração não seja evasão e distanciamento, mas partilha profunda das necessidades dos outros. Levinas diz que a fé é dizer “aqui estou” mais do que “acredito”5 e, por isso, é um salto de generosidade e de confiança para o futuro, rasgando a cortina de névoa e de medo que nos pode envolver. O serviço é transformar o ‘eu acredito’ num ‘aqui estou’, para que o Senhor nos torne transparentes à sua ação e chegue também aos outros através de nós; o serviço é transformar o ‘eu creio’ no ‘aqui estou’, para não deixar a nossa fé numa dimensão espiritual sem corporeidade, que não saiba procurar o encontro, que não saiba estabelecer relações.
 
Se, em nosso serviço, nos limitarmos a viver os primeiros dois níveis, aceitação e compreensão, ele será apenas um olhar de longe para as coisas e para as pessoas, uma ação à distância. Mas se, pelo contrário, conseguirmos cuidar das pessoas, partilhar as várias situações da vida, envolver-nos de coração naquilo que fazemos, fazer gestos que cheguem ao coração do outro, então o carisma das ENS far-se-á realmente espiritualidade encarnada e dom.
 
Escutemos um casal no fim do seu serviço:
 
“Reconhecemos, desde o princípio, que o serviço foi um dom que o Senhor nos fez. Ensinou-nos, antes de mais, que o matrimônio não nos pertence, pois é um dom de Deus à humanidade.  Quantas vezes, tomados pela fadiga, chegamos cansados aos encontros, mas no fim repetíamos sempre que tinha valido a pena, que tínhamos recebido mais do que aquilo que podíamos ter dado ou oferecido. Descobrimos que precisávamos dos outros, que sozinhos tudo é mais difícil, que não se devia confundir intimidade com intimismo... O serviço foi importante também para o nosso caminho de fé, e a razão fundamental pela qual tínhamos aceitado estava justamente no fato de considerarmos o serviço como uma ocasião preciosa para aprender a perceber, com mais lucidez, a vontade do Senhor em nossa vida. A tentação de nos resignarmos com os nossos limites ou de nos habituarmos a uma rotina espiritual que levasse a identificar o que se vive, como sendo o melhor possível era, para nós dois, uma tentação forte e recorrente. O serviço solicitou-nos e estimulou-nos a levar a sério a nossa vocação de esposos cristãos; indicou-nos um caminho praticável para que o Evangelho habite nas nossas casas; ajudou-nos a interrogarmo-nos muitas vezes se, para além dos gestos religiosos, feitos com mais ou menos perseverança, vivíamos a fé; fez-nos conhecer casais que, no quotidiano da sua existência, levam a sério a aventura do amor... Casais que puseram Deus no centro da sua vida, casais capazes de cuidar um do outro, de se dar como dom, de se apaixonar pelo mundo, empenhados no caminho da sobriedade, da justiça, da atenção aos outros. Uns de modo mais manifesto e visível, outros no silêncio e na intimidade do quotidiano, todos foram para nós parábolas concretas de profecia e de comunhão. O serviço nunca, mas nunca, foi uma simples questão de organização...”6
 
Há ainda uma última reflexão a fazer, que nos deve acompanhar sempre: de que forma a equipe deve estar na nossa vida, entre todas as coisas de que temos de cuidar?
 
Geralmente, estamos em equipe com a ideia de receber, e é verdade que recebemos de mil e uma maneiras enriquecimento humano e espiritual, sobretudo porque, ano após ano, numa rotação que é um dos mais belos carismas do Movimento, alguém se põe ao serviço, ou seja, “cuida de nós”. E nós, como cuidamos do Movimento? Qual é o grau de intensidade da nossa pertença ao movimento das ENS? É justamente nesta palavra ‘pertença’ que gostaríamos de nos deter, porque é uma daquelas palavras que, com o tempo, começaram a soar de maneira diferente. Mais uma vez, fomos desfolhar o dicionário e procurar a sua raiz etimológica. Descobrimos que vem, como quase todas as palavras do nosso quotidiano, do latim e é composta por dois elementos: ad pertinere, o primeiro elemento, ad significa ‘para’, ‘ao encontro de’, e o segundo, pertinere, significa ‘dizer respeito a’, mas na palavra pertinere está também o termo pars (parte de alguma coisa) com o qual a palavra se cruza e se forma. Se pusermos em ordem a nossa reconstrução etimológica, pertença (ad partinere) significa “ir para alguma coisa que nos diz respeito”.
 
Os casais da primeira equipe perguntaram ao seu Conselheiro Espiritual, o nosso Padre Caffarel: “Como é que a nossa vida cheia de felicidade humana, de preocupações, de apegos a criaturas, nos permite responder plenamente às exigências do amor de Deus? Será que essa exigência de santidade não nos dirá respeito também a nós, pessoas casadas?”.
 
E o Padre Caffarel repetia: “Sim, sim, diz respeito também a vós, com certeza”7.
 
Todos nós estamos no Movimento há um certo número de anos... dois, três, cinco, dez, vinte... e nenhum de nós, se perguntado, diria não pertencer a esta pequena comunidade de casais a caminho. Mas com que espírito e com que consciência?
 
Se, como vimos, a palavra pertença, ad pertinere, significa, na sua raiz mais profunda, “ir para alguma coisa que nos diz respeito”, como esposos, o que nos diz mais respeito do que a nossa formação num caminho de aprofundamento de fé e de vida do sacramento do Matrimônio? E, se falamos de movimento é porque o Movimento não é só a nossa equipe, e a nossa participação séria, responsável e consciente não pode limitar-se à presença à reunião mensal, por mais constante e contínua que seja. O Movimento é composto por muitos casais, por muitos encontros, por muitas ocasiões de reflexão, por muitas propostas de percursos de aprofundamento, e tudo nos diz respeito e de tudo devemos cuidar, não só enquanto crentes, mas especificamente enquanto esposos. Nós não estamos aqui para lhes ensinar ou aconselhar o que devem fazer, mas simplesmente para nos perguntarmos e lhes perguntarmos: isso diz-nos respeito?
 
Se respondermos que sim, então talvez tenha chegado o momento de cada um de nós cuidar também do Movimento, de considerar com atenção o que ele nos propõe e nos pede, de não termos medo de sentir e de viver a nossa pertença às ENS, cuidando com amor das relações com os outros equipistas, os nossos companheiros de caminho nas nossas equipes de base e aqueles que, durante um tempo determinado, são nossos companheiros de caminho a partir do momento em que nos foram confiados no serviço.
 
Tenhamos sempre presente que tudo o que temos nos é dado.  Não nos foi dado, mas é-nos dado! Tudo nos é continuamente dado gratuitamente, a começar pela vida, pela respiração de cada instante. Este dom, todos estes dons que continuamente recebemos através das mil pequenas coisas de que o nosso dia é feito, coisas grandes e coisas mais pequenas, o dom da vida e tudo o que nos é confiado durante a nossa vida, não podemos guardar para nós, ou seja, devemos, por nossa vez, dar o que recebemos, fazê-lo fluir, introduzi-lo na história, se não murcha, seca e morre. De nada podemos dizer “isto é meu” e nada podemos possuir ciosamente só para nós. De nada podemos dizer “estas coisas não nos dizem respeito”.
 
Também as ENS, entre as outras inúmeras coisas, experiências, situações, relações, foram e são um dom que recebemos e que não podemos guardá-lo só para nós. Temos de cuidar também do Movimento com responsabilidade. Trata-se de um dom que, como todas as coisas, se ficar só nas nossas mãos, corre o risco de se tornar imperfeito e limitado, porque a nossa realidade de criaturas é por natureza imperfeita e limitada. Se, pelo contrário, o dermos a outros, torna-se uma circulação do amor de Deus, no qual todos os limites são superados. O que o Movimento nos deu pode tornar-se uma nova forma de crescimento para outros. Assim fazendo, talvez consigamos dar testemunho daquele Deus da vida e do amor que Juan Árias tão bem descreveu:
 
“O nosso Deus é tudo o que o homem ama. Mas é também e sobretudo o diferente com que o homem sonha. É tudo o que o homem ainda não tem, é tudo o que procura conseguir... O nosso Deus é aquele algo que o homem sabe que pode existir e que é diferente de tudo. O nosso Deus é a capacidade de surpresa para o homem, é o mais, o diferente, o novo, oculto como um silencioso desejo de infinito nos recantos mais secretos do coração do homem. O nosso Deus é frágil, o amor pelo homem tornou-o frágil. O nosso Deus conheceu a alegria humana, a amizade, o gosto da terra e das suas coisas. O nosso Deus teve fome e sede e descansou. O nosso Deus irritou-se, foi passional. E foi doce como uma criança. O nosso Deus foi alimentado por uma mãe e sentiu e bebeu toda a ternura feminina. O nosso Deus tremeu diante da morte... e amou tudo quanto era humano: as coisas e os homens, o pão e a mulher, os bons e os pecadores. O nosso Deus foi um homem do seu tempo, frágil amigo da vida. Mas o nosso Deus não tem preço e ninguém o pode comprar. É gratuito como o sol para as plantas. Podemos chamá-lo, gritar-lhe a nossa sede e fome d’Ele, a nossa perturbação, podemos bater-lhe à porta, levar-lhe a nossa dor e a nossa solidão: mas não temos direitos sobre Ele. Ele é o dom da nossa vida e dá-se com abundância, como o sol e como o ar. O nosso Deus surge a cada esquina, a cada curva da vida, floresce a cada instante para todos. E só pede uma resposta de amor gratuito”8.
 
Quanto amor recebido espera ser gasto e quantas pessoas esperam que cuidemos delas?
 
Quanto tempo levaremos a perceber e a viver em profundidade e com consciência o carisma das ENS? Que poderíamos responder ao Padre Caffarel, que nos leva a pensar que tudo o que diz respeito ao amor nos diz respeito? Peçamo-lo juntos, para depois podermos dizer, com as palavras de Isaías, a todos aqueles que o Senhor nos confia: Cuidarei para sempre de ti!.
 

1 H. Caffarel, “Peregrinação às fontes da espiritualidade conjugal”, em L’Anneau d’Or 99-100 (1961) 347.
2 Carta Mensal (Junho 1950) 2: “Uma palavra suspeita”.
3 Carta Mensal (Outubro 1953) 2: “Creches de bons cristãos”
4 Concilium, revista teológica internacional, 2003.
5 Ore Undici, nº 5, 2001.
6 Daniele e Renata Rochetti – SR Itália – Bergamo.
7 Carta ENS, 10 (1977) 3.
8 Juan Arias, Il Dio en cui non credo, Cittadella, Assis.