“Eu estou em meio a vós como aquele que serve” (Lc 22,27).

2° ENCONTRO INTERNACIONAL DOS RESPONSÁVEIS REGIONAIS
Roma, 24-29 de Janeiro de 2009


“Eu estou em meio a vós como aquele que serve” (Lc 22,27).
Pe. Angelo Epis – Roma, 27 Janeiro 2009

 
Introdução
 
Antes de tudo uma saudação a todos vocês que vieram de tantos países do mundo aonde as ENS chegaram. A presença de vocês convida à solidariedade com os nossos irmãos espalhados pelo mundo, particularmente tocados pelas situações de dor, violência, doenças, problemas econômicos, políticos, sociais e religiosos que causam dificuldades e sofrimentos. A presença de vocês é também sinal de vida e esperança, sinal das capacidades humanas e da benevolência de Deus para com o mundo. Vamos fazer agora uma pausa em memória das situações de sofrimento, violência, pobreza, presentes no nosso mundo e no mundo inteiro. Fiquemos em pé. (1 minuto)
 
- Os casais: marido e mulher se dirão em voz baixa um ao outro os nomes e situações de sofrimento, pobreza e dor que estão na vida pessoal e do mundo inteiro;
- Os padres cantarão Misericordias Domini in aeterno cantabo.
 
Seguirá um minuto de silêncio para todos, em sinal de solidariedade e respeito por todas as vítimas da pobreza e violência no mundo.
 
Uma particular lembrança dos homens e das mulheres espalhados pelos lugares onde as Equipes estão ainda no começo ou estão na espera de conhecer a experiência de fé que nasceu com o Pe. Caffarel. O nosso encontro quer, de qualquer modo, superar a ideia de que tudo gira ao redor do mundo ocidental mais rico, o que nos faz esquecer dos mais fracos e das grandes situações de pobreza que estão aumentando sempre mais no mundo.
 
Vamos lembrar e agradecer a todos aqueles que estão empenhados no trabalho pela beatificação do Pe. Caffarel. Que possa chegar logo à conclusão! Será uma ajuda extraordinária para todos nós, mas também para a Igreja e para o mundo, ao responder aos chamados do Espírito. A Equipe Responsável Internacional (ERI) escolheu, não por acaso, para a oração e a reflexão deste encontro, ter como guia os pensamentos e as ideias a que se chegou na conferência de Chantilly (Pe. Caffarel 1987).
 
O nosso encontro situa-se em Lourdes/2006 e se dirige para onde?... 2012. São dois polos que não devem ser esquecidos nas propostas que pretendo fazer a vocês. Antes de tudo, Lourdes/2006, a sua mensagem, mas também a experiência sempre viva daquele encontro com outros irmãos e irmãs provenientes do mundo todo. Indicou-nos a tarefa de ser, como casais, o reflexo do amor de Cristo. A proposta pedia nossa atenção para três pontos principalmente: a nossa presença na Igreja, a vida e o carisma do nosso movimento Equipes de Nossa Senhora (ENS) e o nosso testemunho diante das urgências da Igreja e do mundo. Assim terminava lembrando as palavras de João Paulo II:
 
  • Convida-nos a retomarmos a herança do Pe. Caffarel sobre a grandeza e a beleza da vocação ao matrimônio, sobre o chamado à santidade, ligada à vida conjugal e familiar, sobre a espiritualidade própria dos casais;
     
  • Leva-nos a viver os pontos concretos de esforço, com atenção e perseverança, especialmente a oração pessoal, conjugal e familiar e a participação regular na Eucaristia;
     
  • Repete-nos a sua vizinhança espiritual com as pessoas separadas, divorciadas e divorciadas que casaram de novo, que, porque foram batizadas, são chamadas, no respeito das regras da Igreja, a participar da vida cristã;
     
  • Pede-nos para estendermos plenamente a graça do nosso batismo às missões que cabem a nós, para participarmos de maneira sempre mais ativa na vida da Igreja ao lado dos jovens, em particular durante o noivado e os primeiros anos de casamento;
     
  • Dá-nos coragem para testemunhar sempre a grandeza e a beleza do amor humano.
Deveríamos verificar aqui quanto daquelas propostas e dos outros itinerários passaram a fazer parte de nossa preocupação, de nosso compromisso e de nossa vida. Quer dizer, de que modo cresceram as Equipes no lugar em que vivemos? O risco, sempre presente, é de elaborar belos documentos, que acabam como textos de biblioteca, ou de viver uma simples experiência emotiva que não muda a vida.
 
O nosso olhar deve, ainda, partir do passado, para ver o futuro, sentindo-nos envolvidos num processo de leitura da nossa história, da história do mundo e da Igreja, para predispor percursos e preparar projetos onde investir as energias que Deus nos deu. O problema de base não é o lugar, embora a escolha seja sempre significativa, mas como encontrar modos para nos sentirmos todos realizadores de um grande encontro que caracteriza o nosso movimento. Quais realidades tomar para responder fielmente a Deus nos dias de hoje da história?
 
O nosso movimento atinge cerca de setenta países! Isto dá muita alegria, mas põe inevitavelmente problemáticas novas a que somos chamados a responder. Dentre elas, o serviço nas equipes e em todos os níveis (equipes de base, setores, regiões, super-regiões...); a espiritualidade das equipes; o testemunho da Igreja e nas sociedades onde vivemos. Falo de sociedade no plural, mas talvez deveria dizer também igrejas no plural, sem por isso esquecer a unidade em torno ao Santo Padre, mas sem esquecer lugares, culturas e expressões diversas de grande riqueza.
 
Como sempre nos guia a Palavra do Senhor, através de algumas imagens evocativas:
 
1. Lucas e João: Jesus se fez servo. (Lc 22, 27; Jo 13,1-20).
 
Para um movimento como as ENS, que escolhe ser, como casais, o reflexo do amor de Cristo, e realizar o encontro destes dias, é fundamental interrogar-se sobre a qualidade do serviço e dos serviços. O cuidado do amor de Cristo encontra nos serviços que realizamos em vários níveis a expressão sempre delicada e atenta a não trair a missão que nos foi confiada. Não estamos aqui como funcionários numa reunião de dirigentes, mas como participantes e corresponsáveis do amor de Cristo que foi derramado nos nossos corações. Muitas situações que nos fazem pensar e nos preocupam nas equipes têm uma ideia de serviço nem sempre correta. Nós, neste tempo que o Senhor e a confiança de outros irmãos e irmãs nos deram, temos a obrigação de nos perguntarmos sobre a qualidade do nosso serviço e do serviço do Movimento. Foi um chamado que nos fizeram num clima de fé e de responsabilidade! É bem diferente do poder que se exercita na sociedade. Por meio deste chamado temos que dar o nosso testemunho de amor e de fidelidade a Deus, à Igreja e ao Movimento.
 
“Eis que estou em meio a vós como aquele que serve” (Lc 22, 27).
 
Lucas menciona a discussão dos apóstolos sobre quem era o maior dentre eles. Depois, lembra a palavra dirigida a Pedro: “Simão, Simão, eis Satanás pediu insistentemente para  vos peneirar...” (v. 31) e a palavra sobre a “espada” (vv. 35-38). Tudo isso se situa no contexto da Páscoa hebraica. Estamos diante do sinal real da passagem de Deus que nos salva; Deus passa na vida do homem, na história do seu povo, na história do mundo. E quando Deus passa, salva. Onde se celebra a Páscoa aprende-se a liberdade soberana de Jesus ao dar-se por amor. Aprende-se a dar a vida mesmo quando somos vítimas da violência dos outros. Que tipo de relação cria aqui Jesus com as pessoas que estão junto com ele? Jesus encontra-se à mesa com os discípulos que já amou, com quem já dividiu muito, porque os chamou e eles já responderam com fidelidade e generosidade: “Vós sois aqueles que perseveraram comigo...” (v. 28). Jesus reconhece os seus méritos porque acolheram a sua palavra, e todavia se revelam também os seus limites: Judas trai, Pedro renega, e os outros se afastarão dele. De resto, se eles podem arrumar duas espadas assim que Jesus lhes acena a necessidade de comprar (metaforicamente) apenas uma espada, significa que eles as tinham facilmente à disposição: talvez não tivessem entendido totalmente o sermão da montanha... Neste ponto é muito bonito notar como começam as palavras de Jesus naquela sala no andar superior, palavras que, naquele contexto, nos aparecem grandíssimas e já nos dizem o sentido da paixão (v. 14): Quando chegou a hora, tomou lugar à mesa e os apóstolos com ele, e disse: Desejei fortemente comer esta Páscoa convosco antes da paixão, porque vos digo que não a comerei mais. Assim, portanto, fala Jesus: Desejei fortemente (com um grande desejo) comer esta Páscoa convosco. Tudo o que acontece naquela sala (em particular a Eucaristia), é a expressão do desejo de Jesus de estar com os seus discípulos, e, mais ainda, a expressão do desejo de Deus de estar com a humanidade. A sua vida foi totalmente de serviço, assim também a sua morte será o momento supremo do serviço: o que lemos em Marcos (10,45) numa célebre, lapidária formulação (“O filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para salvar muitos” – Mc 10,45), Lucas faz assim, e justamente no contexto da última ceia: “eu estou em meio a vós como aquele que serve” (Lc 22,27). É o programa de Jesus já anunciado em Nazaré (Lc 4,16-30): proclamar e mostrar o rosto daquele Deus que é feliz de estar com os pobres, com encarcerados, com os presos, para libertá-los. O tempo de Jesus é o tempo que diz a alegria de Deus em estar com a humanidade; todos os anos de sua vida, todo o segmento da história que é sua, é o tempo necessário para dizer de maneira definitiva a alegria de Deus em estar com a humanidade, em encontrar “esta” humanidade, que entretanto não o merece, porque está distante dele. É no serviço a favor de toda a humanidade que Jesus prepara os seus próximos a viver a paixão. Este evento é de grande força evocativa: Jesus a serviço da humanidade, enquanto vive a última ceia, nos remete certamente à Eucaristia, mas também às nossas reuniões de equipe. Alude àquela indicação de Lourdes, onde fomos convidados a estarmos atentos às situações das várias equipes, mas também àqueles que se preparam para o casamento ou vivem a dor de seu fracasso ou outros percursos ainda.
 
“Amou-os até o fim” (Jo 13,1).
 
João dedica cinco capítulos à última ceia de Jesus. Como nos diria Pe. Caffarel, a Eucaristia é o coração da nossa experiência de equipistas, aquela ceia é o coração de toda a experiência evangélica. Tendo amado os seus próximos que estavam no mundo, amou-os até o fim. Isto é: tudo o que Jesus disse e fez antes, João resume assim: “tendo amado os seus próximos”. Se queremos ser reflexo do amor de Cristo, o caminho que devemos percorrer é o do amor. Se do início dos capítulos 13-17 passamos a ver a conclusão, encontramos a última palavra de Jesus no cenáculo, antes de sair para o Getsêmani: Eu lhes fiz conhecer o teu nome e o farei conhecer para que o amor com que tu me amaste esteja neles e eu neles (Jo 17,26). De novo o tema do amor, neste caso explicitamente indicado como o amor de Deus. O que é a comunidade cristã? O que são as nossas equipes? São aquelas realidades que reconhecem que o amor de Deus mora nelas; elas são constituídas como comunidades justamente por aquela caridade que é a essência de Deus, daquele amor que une o Pai e o Filho (ou, como aparece em outro lugar, o Pai, o Filho e o Espírito Santo). A Igreja como imagem da comunhão do amor de Deus (Trindade). Estamos bem distantes do modo com que às vezes se percebe a Igreja; esta, por exemplo, é vista por muitos como o “lugar” em que se vai buscar um serviço religioso (uma oração, um momento de consolação e de ajuda para as nossas dificuldades). Há algo de verdadeiro nisto, mas João diria outra coisa: é a comunidade que nasce da revelação do amor de Deus e que se torna o sinal da presença concreta do seu amor no mundo; e é o lugar em que se criam novas relações, vividas no nome de Deus, da caridade divina. Vista a teologia do matrimônio que Pe. Caffarel delineia, poderíamos dizer a mesma coisa das equipes. O sinal sublime de tudo isto é o ato de lavar os pés,  que prepara o evento da cruz. A maior liberdade que o homem pode alcançar é a que somente Jesus pode dar: tomar nas próprias mãos a vida e disponibilizá-la ao serviço. Por aquela liberdade somos tão donos da própria vida, da própria existência, que a colocamos ao serviço dos outros.
 
Esta, que aparece como a forma do “amou-os até o fim”, Jesus “servo”, na verdade é a forma mais alta da liberdade. Na medida em que soubermos viver o serviço no estilo de Jesus, revelaremos de um lado o seu amor e do outro permaneceremos aos pés dos nossos irmãos e irmãs, lavados pelo serviço, que voltem livres para o caminho. É dizer a todos os irmãos: qualquer que seja a sua necessidade, a sua condição de necessidade, de dor, de sofrimento, pode contar com Deus que é servo.
 
Estas breves considerações de textos tão ricos nos levam a examinar e viver o nosso serviço com olhos novos. Não somos funcionários, mas fomos escolhidos para lavar os pés dos irmãos, para fazê-los caminhar no mundo. Isto abre dentro do Movimento uma busca pela qualidade do serviço, mas também horizontes novos para o nosso compromisso com a Igreja.
 
2. Matrimônio, obra-prima de Deus.
 
Pe. Caffarel diz que o matrimônio é obra-prima de Deus e é um caminho de santidade. A sua reflexão sobre o sacramento do Matrimônio é um dos pontos mais elevados. A sua herança abriu perspectivas que sabem olhar longe. A sua preocupação era de decifrar a realidade da vida conjugal à luz da união com Cristo. Em 1959, em Roma, dizia: “O matrimônio cristão, sacramental, não só representa a união de Cristo com a Igreja, mas também faz com que o casal participe desta união. Quero dizer que graças ao sacramento do Matrimônio, o amor que une Cristo à Igreja é o mesmo que une, faz viver e faz feliz o esposo e a esposa”. (Les Équipes Notre-Dame, essor et mission des Couples chrétiens, p. 61). E’ o essencial da vida conjugal.
 
Na Bíblia, a união conjugal serviu aos escritores sacros para simbolizar as relações de Deus com seu povo. O Antigo Testamento compara constantemente as relações de Deus e do seu povo eleito com as relações do esposo com a esposa, e o traço dominante desta comparação simbólica é a fidelidade. Este tema é inaugurado pelo profeta Oseias, retomado por Isaías, por Ezequiel e em numerosos passos dos salmos e da sabedoria. O desenvolvimento deste tema desemboca em Paulo e na Carta aos Efésios, que revela o sentido mais profundo da união do casal: a realidade inteira do casal e da sexualidade remete ao mistério conjugal do amor de Cristo e da sua Igreja. A união conjugal inteira, até mesmo na sua consumação física, simboliza o mistério.
 
Estas são as condições postas pela Bíblia para que a sexualidade do casal tenha o seu sentido pleno. São basicamente estes os pontos fundamentais de referência ética para que a sexualidade seja realmente humana.
 
Sejam submissos uns aos outros no temor de Cristo. As esposas sejam submissas aos maridos como ao Senhor... E vós, maridos, amai as vossas esposas, como Cristo amou a Igreja e deu a si mesmo por ela, para fazê-la santa, purificando-a por meio da lavagem da água acompanhada da palavra, a fim de mostrar-se diante de sua Igreja toda gloriosa, sem manchas nem rugas ou algo semelhante, mas santa e imaculada. Assim como também os maridos têm o dever de amar suas esposas como o próprio corpo, porque quem ama a própria esposa ama a si mesmo. De fato, ninguém jamais odiou a própria carne; ao contrário, a nutre e cuida dela, como faz Cristo com a Igreja, porque somos membros de seu corpo. – Por isto o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois formarão uma só carne. – Este mistério é grande; digo em relação a Cristo e à Igreja! (Carta de S. Paulo aos Efésios 5, 22-32).
 
“É consolador descobrir que em cada busca conduzida com honestidade chega-se, no final, a certos valores permanentes que pertencem ao homem de sempre. E é bonito ver como a busca humana se encontra aqui com a revelação cristã.”
 
O percurso que Pe. Caffarel enfrentou brilhantemente e delineou na já citada conferência de Chantilly, chama nossa atenção ainda hoje. O grande problema dos cristãos, hoje como sempre, é realizar em si e no próprio ambiente uma íntima compenetração entre a sua cultura e o Evangelho. A linha que separa essas duas realidades não divide os “crentes” dos “não crentes”, tampouco crentes “praticantes” ou “não praticantes”, mas atravessa a mente e o coração de todos. Há professores, políticos, profissionais que frequentam a paróquia, que em nome do seu cristianismo procuram realizar com escrúpulo as próprias obrigações “de Estado”, mas também na escola, na política, na profissão possuem, sem perceber, uma cultura incompatível com a sua fé. Não houve no passado, até o século XIX, mercadores de escravos que se consideravam perfeitos cristãos? É preciso recuperar a profecia, que para nós é romper o muro divisório que nos separa do mundo. Isto é particularmente difícil numa sociedade que não por caso é definida como “complexa”, onde muitas vezes o cristão tem que enfrentar situações novas e questões inéditas, mais lendo a realidade do que recorrendo a esquemas preestabelecidos. Em particular os leigos, que pela sua posição no coração do mundo são mais sensíveis a esta complexidade, não devem ter medo das perguntas, nem ter pressa em dar logo respostas unívocas e reconfortantes. Ao contato com os problemas teóricos e práticos que a sua específica posição na sociedade os faz encontrar, vocês devem ser os primeiros a experimentar que “a Igreja (...) não tem sempre pronta a solução para cada questão” (GS, n. 33). Incitados pelo Pe. Caffarel, o nosso “busquemos juntos”, será então uma busca perene.
 
Neste caminho, as indicações que proveem da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério terão que constituir uma insubstituível estrela polar. Mas o contexto em que devemos viver é formado pela experiência mundana, pela vida cotidiana dentro – sem nenhum filtro, sem nenhuma defesa – do jogo fragmentado e contraditório das situações, no cruzamento caótico das mensagens, na frágil construção das relações, partilhando as emoções, as dificuldades, as tensões, mas também as incertezas e as dúvidas, dos homens e das mulheres. Os campos da procura e do aprofundamento são ainda imensos. É preciso levantar os olhos e sair da ideia de movimento “jardim de infância” para nos tornarmos adultos, prontos a dar testemunho da nossa fé.
 
3. Curar o amor: as equipes a serviço do matrimônio.
 
A nossa tarefa não é fácil, mas deve nos dar muito entusiasmo. Requer que analisemos os nossos percursos e os façamos cada vez mais resposta verdadeira às exigências dos casais das ENS, mas também proposta viva na comunidade da Igreja e na sociedade. Parece-me útil sublinhar alguns âmbitos sobre os quais pensar mais. As ciências humanas e a fé, as experiências que vivemos e a vida de igreja são chamadas a encontrar um acordo feito de conhecimento, aceitação, mas também e sobretudo escuta da verdade evangélica.
 
Acho que na nossa sociedade a beleza do amor deve ser redescoberta, mas também a necessidade de curá-lo com o encontro com Cristo médico das nossas almas, mas também com a renúncia e o compromisso. De dois tipos pelo menos. Antes de tudo, renúncia do excesso de narcisismo espontâneo e sem limites, que nos impede de reconhecer o desejo do outro na sua originalidade. É fácil amar no outro uma imagem sonhada de mim mesmo; é menos fácil aceitar a desilusão com outra pessoa que me faça reconhecer a minha falta. Renúncia, ainda, do próprio pecado, isto é, do aproveitamento voluntário deste narcisismo espontâneo, renúncia do medo e do domínio como atitudes escolhidas deliberadamente. Começar a amar quer dizer começar a sofrer, em termos cristãos “carregar a cruz”, entrar em luta com as forças de prepotência que estão dentro e fora de nós.
 
Constrói-se o amor com o tempo, através de sucessos e fracassos. Este também é um perfil cristão, que chega até nós por conhecermos um Deus que nos ama de maneira irreversível, pacientemente, com a lentidão dos nossos caminhos incertos e em meandros dos nossos esquecimentos e transgressões: de um amor fiel e misericordioso. É significativo que o único matrimônio que na Bíblia é tomado explicitamente como símbolo do encontro entre Deus e a humanidade seja o do profeta Oseias com a mulher prostituta. O que faz da união homem-mulher símbolo do encontro Deus-homem não é, nesse texto, a constância no sucesso, mas a fidelidade na infidelidade do outro e na dificuldade da comunicação. O tempo é uma prova para o casal, um desafio de fidelidade; mas, justamente pela prova que ele representa, o tempo é uma grande possibilidade, porque convida cada um dos dois a ter confiança no outro do jeito que ele é, e a enfrentar os acontecimentos da vida. O tempo é o que permite descobrir que a inevitável solidão humana não é apenas fonte de angústia, mas é também trampolim para se lançar continuamente no esforço da comunicação, da invenção, da fidelidade. O amor, por si só tende a durar; a durar e a ser exclusivo: os dois se empenham no projeto de se fazer “uma só carne”: precisa-se de tempo, tentando por toda a vida.
 
O casal é o lugar em que se articulam as três funções da sexualidade. Em primeiro lugar, a função relação: a Bíblia apresenta a atração sexual como o que permitirá pôr fim ao sentido de solidão e de abandono, como solidariedade na construção do mundo, como fonte de alegria para os dois que reconhecem que pertencem à mesma “carne” (Gn 2). No jardim do Éden, a regra é o reconhecimento das diferenças; é num único movimento que o primeiro casal reconhece a sua diferença sexual, a diferença entre Deus e o homem, a diferença entre os frutos permitidos e os proibidos. Quando essas diferenças são transgredidas, a sexualidade é mal vivida, a relação homem/mulher deixa de ser fonte de júbilo e se torna fonte de violência e de aproveitamento (Gn 3). Em segundo lugar, no amor deve articular-se a função prazer. É sem dúvida, a função do prazer, a primeira na descoberta da sexualidade, a mais radical, a Bíblia não hesita, sobretudo no Gênesis e no Cântico, em reconhecer a força e a beleza do eros que atinge todas as relações de casal; a antropologia contemporânea, também aqui, confirma isso, revelando como não pode haver expansão da personalidade sem dar um correto lugar ao prazer. Em terceiro lugar, por fim, o amor deve integrar a função fecundidade: a fecundidade que dá vida e alegria aos dois, a fecundidade que faz o casal ativo na construção do mundo, a fecundidade que culmina na obra-prima do trabalho em comum que é o filho. A correta expansão de um casal é possível só através de uma equilibrada integração dessas três dimensões da sexualidade.
 
O amor deve ser construído. O casal perfeitamente realizado não existe; o que existe são as pessoas, os casais sempre à procura de se realizar. Não se pode regularizar a sexualidade uma vez por todas: é uma tarefa que não acaba nunca; é uma tarefa que para os cristãos acontece no movimento subterrâneo do Espírito Santo. Para realizar bem esta tarefa é necessário partir do real: a vocação moral, e cristã, pega o homem e a mulher onde quer que estejam, com a sua concreta organização psicossexual. Deus não confunde santidade e perfeição: também quem tem defeitos e carências afetivas pode construir a sua relação com Deus, desde que procure superar essas carências, quando é possível. Levar a sério e com lucidez a nossa condição, também nos seus limites, quer dizer ser humilde, isto é, realista, e capaz de serenidade, que evita dramatizar e educa para a paciência, para a ternura: ou não é a serenidade a outra face da esperança?
 
Para curar o amor, creio que devem ser destacados alguns aspectos da nossa construção da equipe:
 
  • Redescobrir o matrimônio cristão; Pe. Caffarel guardou como preciosa sobretudo a teologia paulina. Seria interessante promover neste ano, dedicado ao apóstolo Paulo, um conhecimento e estudos sobre este tema. À primeira vista parecem interessantes os aprofundamentos que Pe. Caffarel tira das cartas paulinas.
     
  • A responsabilidade e o serviço. O fato de nos encontrarmos aqui como responsáveis de várias partes do mundo nos faz perguntar sobre a tarefa que temos de servir os irmãos (segundo os vários níveis de responsabilidade). O que foi um chamado ao serviço se realiza como empenho em servir os outros? Algumas temáticas que encontramos nos nossos documentos oficiais são muitas vezes desconsideradas, mais por ignorância que por má vontade. Sem dúvida é uma tarefa delicada a responsabilidade! Por isto o nosso movimento a vive como um tempo limitado, não como carreira. Parece-me útil, em relação a isso, relembrar o que interessava ao Pe. Caffarel na ajuda mútua no casal, na equipe, com as outras equipes.
     
  • A tarefa da escuta, da vigilância e da animação não são passagens ocasionais. Em todos os níveis a nossa responsabilidade se exercita promovendo e solicitando as ligações, promovendo as iniciativas de crescimento espiritual humano e cultural (seções, retiros...).
 
4. A espiritualidade.
 
Temos que gastar algumas palavras sobre a espiritualidade. Para o Pe. Caffarel foi uma passagem essencial na fundação e no desenvolvimento das equipes. Era um tema sem dúvida pouco vivido e percebido quando os primeiros casais iniciavam seu caminho. Pensar numa espiritualidade para os leigos e ainda mais para os casais era impensável. Quais são os elementos constitutivos desta espiritualidade?
 
Henri Caffarel afirma, enfaticamente, que “os leigos devem definir bem quais são os seus meios e os seus métodos, pois isto constituirá a espiritualidade do cristão casado” (Conferência aos responsáveis das equipes, 1952).
 
Olhando os editoriais da Carta das Equipes dos primeiros anos, encontramos coisas interessantes. Em junho de 1950, por exemplo, Caffarel dá uma definição da espiritualidade: “a espiritualidade é a ciência que trata da vida cristã e das vias que conduzem a seu pleno florescimento”. Logo o Padre precisa que “não se trata, para as famílias que procuram construir a sua espiritualidade, de fugir do mundo, mas de aprender como, com o exemplo de Cristo, servir a Deus na sua vida e no mundo. Ele lhes faz descobrir que a espiritualidade não é feita só de alguns passos como a oração ou a ascese, mas comporta o serviço a Deus no lugar em que se vive: em família, no trabalho, na cidade” (Pe. Fleischmann). Creio que devemos destacar alguns elementos que me parecem típicos e fundamentais da experiência de equipe:
 
- A coparticipação – partilha.
 
Esta é uma passagem essencial da vida de equipe. Muitas vezes é desconsiderado; esquece-se assim o processo de crescimento espiritual e o caminho de santificação nas equipes. Os nossos textos de pilotagem e formação de equipe lembram como é importante a partilha dos pontos concretos de esforço e, portanto, na regra de vida. Com o tempo, e há negligência, a reunião de equipe se torna pouco mais que um encontro de amizade. Ela é um lugar formidável para crescer em Cristo e para Cristo.
 
- Os dois sacramentos: Matrimônio e Ordem.
 
A situação atual põe em evidência a dificuldade de poder viver a partilha dos dois sacramentos. Muitas vezes se fala da falta de presbíteros. Antecipando de algum jeito o que dirá o “Catecismo da Igreja católica”, Pe. Caffarel destaca a importância da união dos dois sacramentos. O Catecismo os põe juntos chamando-os sacramentos de comunhão na Igreja. Sem dúvida a falta de vocações sacerdotais nos faz sentir de perto a dificuldade de viver e entender esta comunhão. Todos os países encontraram soluções diferentes: diáconos, religiosos e religiosas, outros casais... percursos louváveis e de grande ajuda também graças ao serviço destes homens e mulheres. É preciso, todavia, entender melhor o significado desta intuição de Pe. Caffarel. Perceberemos que o problema não é só a falta de presbíteros. Seremos levados a redescobrir a riqueza do sacerdócio em todas as suas dimensões: o sacerdócio comum dos fiéis, o ministério dos que foram ordenados... Redescobriremos o nosso ser sacerdotes que da Eucaristia fazemos com que a vida se torne vida eucarística.
 
- “L’oraison”.
 
Uma dimensão também essencial é a da oração. Para um homem, como Pe. Caffarel, que gastou sua vida pela oração e para ensinar a oração é algo fundamental. Qual é o objetivo essencial da nossa experiência? A união com Cristo, diz Pe. Caffarel. Tal união pode ser alcançada com a oração em toda a riqueza desta expressão. Oração pessoal, comunitária, familiar, conjugal... Naturalmente o máximo é a Eucaristia. A Eucaristia é a fonte e o topo da nossa vida. Para ela confluem e voltam todas as nossas realidades de vida: alegrias e dores, esperanças e desilusões.
 
Sem dúvida, também há outros valores da espiritualidade das ENS que devemos viver, mas esses me parecem essenciais. A Palavra de Deus que se escuta e se medita no silêncio nos leva às atitudes de Maria e ao nosso Magnificat cotidiano.
 
5. Olhando para o futuro
 
O percurso que se vai delineando nos leva agora a olhar para o futuro. Abrem-se muitos campos com que somos solicitados a nos confrontar. Não podemos dar respostas a tudo, certamente não podemos permanecer inertes escondendo em baixo da terra o tesouro precioso que recebemos.
 
Deus: Palavra, Oração.
 
A relação com Deus qualifica as nossas relações. Se falta este momento da relação a sós com ele, tornam-se não autênticos também os momentos comunitários. A nossa relação com Deus não exclui nada da dimensão social e comunitária. A autenticidade da dimensão comunitária encontra o seu fundamento justamente na relação pessoal com Deus; estas dimensões estão estritamente ligadas. É muito importante destacar isso, porque muitas vezes desequilibramos a nossa relação com Deus, seja no íntimo ou na comunidade, que anula, ou passa para um segundo plano, a relação pessoal entre a alma e Deus. Mas o fundamento da dimensão comunitária é a dimensão pessoal. A autenticidade da nossa celebração dominical comunitária tem o seu fundamento na relação pessoal com Deus. Se não tem isso, as nossas celebrações comunitárias correm o risco de ser momentos emotivos, emocionais, espetaculares, ou mesmo chatos, porque falta esta prévia dimensão pessoal.
 
A sexualidade.
 
Há uma profunda divisão nas nossas culturas a propósito do matrimônio e da sexualidade. Há uma corrente de opinião que aplaude aquilo que parece uma verdadeira liberação sexual em ato. Ao oposto, uma outra corrente, denuncia aquilo que parece uma terrível decadência dos costumes e levanta-se contra a difusão do erotismo, das uniões sem matrimônio, da despudorada propaganda da televisão, da publicidade, do cinema. Uma terceira corrente, sobretudo de jovens, se admira. “Por que tanto barulho? O que interessa para vocês se uma garota e um garoto se entendem e sentem prazer?” A sexualidade divide as pessoas! Também na Igreja parece haver incompreensões, sussurros e silêncios. No entanto, é uma das realidades mais censuradas, mais confusas, mais ideológicas, mais indiscutíveis; talvez está em todas as partes porque em nenhum lugar ela é interrogada, relativizada, humanizada... Pe. Caffarel a questionou e nos ofereceu percursos para humanizá-la. As suas respostas não devem ser procuradas em definitivo, mas como convite a continuar a procurar juntos.
 
Esta situação não é só de hoje. Toda crise social significativa impõe “a questão sexual”. Não a sexualidade entendida como uso dos órgãos sexuais para o prazer e para a reprodução, mas entendida no sentido amplo de potência, poder, afirmação de si próprio. Quando os ânimos se enfrentam e se desentendem, na discussão, no jogo, no esporte, a sexualidade está presente: pelo fato que estão presentes seres sexuais, à procura de potência. A procura que abre, então, a sexualidade é esta: como pessoas divididas, cortadas, separadas umas das outras podem enfrentar-se, ser plenamente elas mesmas na sua potência, sem que se suprimam reciprocamente? Como podem viver juntas sem se negar, sem se renegar? Por outro lado, se a sexualidade entra em jogo quando os ânimos se dividem, ela está presente também quando eles se unem: é dela que parte a invocação ao encontro, à aliança. A procura que desvenda a sexualidade é esta: como as pessoas podem se unir sem se confundir? Como se unir aos outros permanecendo o mesmo. Sexualidade deriva do latim secare que quer dizer cortar. Quando se corta se divide em dois o que até então era uma única coisa. A unidade estava na origem, na lembrança, e está, portanto, no fim, no sonho; mas o caminho da unidade perdida para a unidade que se reencontra passa através da separação. Neste caminho, que é o do homem, união e separação estão sempre juntas. O amor que faz as pessoas humanas unidas é união dos diferentes. Essa sugestão tirada do significado da palavra nos faz já intuir que o horizonte da sexualidade é o amor, que a divisão homem-mulher é um grande poder de diferenciação e de unificação.
 
A sexualidade, como é apresentada na Bíblia, é uma via fascinante e arriscada. É uma dimensão constitutiva da criatura de Deus: “Deus criou o homem à sua imagem: homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27). Ela não é, então, uma realidade banal, secundária, um algo a mais de uma natureza humana assexuada; é uma dimensão radical da existência pessoal e social. Por isso o modo de regular a vida sexual é muito importante para a humanização do homem; a sexualidade bem vivida pode contribuir para construir o homem e a mulher, mal vivida pode arruinar a vida e a humanidade dos dois. Por isso a sexualidade é um lugar obrigatório da fidelidade ao plano de Deus, é uma passagem decisiva da relação com Deus. Esta valorização da sexualidade se contrapõe a certas correntes atuais que querem banalizá-la, bem como o exercício genital, e declarar indiferentes os comportamentos sexuais.
 
A sexualidade, ao contrário, empenha a pessoa toda: São Paulo reprova alguns coríntios que queriam reduzir a atividade sexual a gesto indiferente como comer ou beber, enquanto a sexualidade é uma função do “corpo”, isto é, da pessoa na sua totalidade concreta: a relação sexual não é um gesto superficial que permanece periférico à pessoa, mas empenha o homem inteiro (1Cor 6,16ss.). Por outro lado, a sexualidade tem também a função de unir profundamente as pessoas, de fazer delas uma só “carne” (Gn 2,24).
 
Vê-se, portanto, como se deve entender a sexualidade segundo as perspectivas bíblicas: ela é uma força que atinge todos os aspectos do nosso ser. Enquanto à função genital do corpo, é a esfera de nós mesmos que foi disposta ao prazer e à procriação, a sexualidade é toda a afetividade humana, é todo o ser-homem e o ser-mulher, como diferentes e complementares. A sexualidade é a dimensão rica e profunda da nossa personalidade, que nos permite realizar-se entrando em comunhão uns com os outros. É uma afirmação central da Bíblia e é convicção radical do cristianismo: a sexualidade, o casal e a família não são tudo na vida do homem e da mulher. Como todas as outras realidades terrenas, como o dinheiro, o poder, a vida sobre esta terra, o casal é marcado pela relatividade evangélica e da criatura. A sexualidade é, desde a criação, relativa à cultivação do jardim, à construção do mundo (poderíamos dizer à moral entendida como amor de todo o humano do homem?); e a sexualidade é, no encontro com Cristo, relativa à procura do Reino.
 
Esta relatividade explica duas afirmações apenas aparentemente surpreendentes do Novo Testamento: o reconhecimento do celibato como um outro modo de viver a vida sexual; e o chamado a abandonar, em vista do Reino, o pai e a mãe e a não absolutizar os laços com o cônjuge e os filhos. A família não é secundária, mas é segunda em relação à solidariedade que o evangelho exige com o Senhor e por isso com os pobres e os oprimidos.
 
A realidade sexual é uma realidade aberta para algo mais vasto em relação à família: o Reino de Deus e a justiça o seu desígnio para o mundo. O sonho de um casal refúgio, casal ninho, tão radicado na nossa época, é cortado na base pelo chamado de Cristo e pela luz que realmente humanos e possíveis de se humanizar apenas se dispõem à busca de um mundo conforme ao projeto de Deus, isto é, um mundo que ama.
 
A lei da sexualidade é o amor.
 
Esta frase corre o risco de ser mal entendida se com a palavra “amor” pensarmos apenas nos sentimentos amorosos; eles são importantes, mas não bastam para definir o amor. Tentemos destacar alguns traços que caracterizam o amor entre homem e mulher. O amor promove as diferenças. Esta afirmação que é confirmada pelas ciências humanas, vem claramente de muitas histórias bíblicas e especialmente da história que descreve o primeiro ato de amor de Deus: a criação. A criação é apresentada, no Gênesis, como ato de separação; criar a vida consiste, para Deus, em separar um caos indiferenciado: Deus separa céu e terra, noite e dia e, no ápice, o homem e a mulher. Será, portanto, humano, obediente ao ato criador, todo comportamento sexual que favorece a separação, a identificação e a promoção do outro, que rejeita colocar-se num mundo indiferenciado, que aceita a diferença entre o homem e a mulher, entre os pais e os filhos, entre o passado e o presente, entre o homem e o mundo, entre sonhos e a realidade. Amar quer dizer viver em modo que se reconheça o desejo do outro por aquilo que ele é e não por aquilo que eu gostaria que fosse. Trata-se de reconhecer a alteridade do outro e não de alterá-lo, reconhecê-lo fazendo-o cada vez mais ele mesmo. Amor é respeitar o outro, procurar a comunhão na diferença.
 
Mundo: Pobreza, internacionalidade, precariedade, solidariedade.
 
Há realidades que batem à nossa porta. Nós rezamos pelo advento do reino de Deus. Esperamos um mundo em que as pessoas não morram precocemente por causa da pobreza, enquanto o sistema econômico do mundo de hoje agrava a situação dos pobres e acentua a iniquidade social. Hoje, a comunidade mundial deve enfrentar a crescente precariedade no trabalho e as suas consequências. A idolatria do mercado e do lucro, como a ambição do dinheiro segundo o autor da carta a Timóteo, aparece como a “raiz de todos os males”. O que podem e devem fazer as igrejas neste contexto?
 
Vejamos o tema bíblico do jubileu que Jesus evoca para definir o seu ministério. Segundo o texto do Levítico (Lv 25,8-14), durante o jubileu tinha que ser proclamada a libertação; os imigrantes por motivos econômicos podiam voltar para as suas casas e famílias; se alguém tinha perdido os próprios bens, teria que viver modestamente como residente estrangeiro. O dinheiro não podia ser emprestado com juros, nem a comida dada como salário. O jubileu implicava uma ética da comunidade, a libertação dos prisioneiros e o seu regresso para casa, o restabelecimento dos direitos financeiros e o cancelamento dos débitos. Para as vítimas de estruturas sociais injustas, isto significava o restabelecimento da lei e dos seus meios de subsistência. Ao contrário, a lógica do mundo de hoje, no qual ter mais dinheiro “é visto como o mais alto valor e a finalidade da vida, só pode levar à morte. Como igreja, somos chamados a nos contrapor a tudo isto, vivendo juntos no espírito do jubileu bíblico, seguindo Cristo e proclamando este evangelho. Na medida em que os cristãos experimentam a cura de suas divisões, estes tornam-se mais sensíveis às nossas divisões que ferem a humanidade e a criação.”
 
Quis colocar este texto, tirado da “Semana de oração pela unidade dos cristãos”, para nos estimular a fazermos percursos atentos ao homem e à história, mas também ao percurso ecumênico já vivido em tantas realidades das nossas equipes.
 
6. Um ícone para propor um caminho: O Samaritano (Lc 11, 25-37).
 
Para começarmos uma conclusão, coloco diante dos nossos olhos a parábola do bom samaritano. Ela parte de uma pergunta sobre o maior mandamento: Amor de Deus e amor ao próximo e depois o escriba procura compreender quem é o próximo. A resposta de Jesus convida a olhar, meditar a parábola e levá-la na vida: o próximo é você cada vez que está próximo a um homem que precisa de você. Quer dizer que o homem que precisa de ajuda é aquele que lhe dá a possibilidade de amar. Isto nos remete à nossa casa com o esposo, esposa, filhos/as, os vizinhos, o estrangeiro.
 
Quero solicitar a cada um de vocês, enquanto nos preparamos ao próximo encontro, a conjugar os verbos e as ações que o bom samaritano realiza:
- Ver
- Sentir compaixão
- Estar próximo
- Sanar as feridas
- Derramar óleo e vinho
- Carregar sobre o cavalo (cavalgadura: trabalho, história, dons de Deus na vida)
- Levar ao albergue
- Cuidar do outro
- Doar dois denários: amor de Deus e amor ao próximo
- Partir
 
Conclusão
 
No final desta conversa, creio que não caiba a mim tirar as conclusões. Que cada um que foi estimulado pela parábola não se pergunte mais “quem é meu próximo?”, mas “quem foi próximo daquele homem?”. É inútil agora perguntar-se quem se encaixa na categoria do ‘próximo’, a partir de agora é claro que o verdadeiro problema é: aproximar-se do outro. O problema não está em quem tem o direito à minha caridade, mas está em mim: como posso chegar a ter em mim esta misericórdia (v. 37) que me permite mobilizar-me pelos outros, sem olhar na cara de ninguém e de repente sem mesmo saber o nome “daquele homem” que eu ajudei?
 
É o trabalho que nos espera: o Espírito Santo nos chama a sermos no mundo testemunhas do amor e do matrimônio, seguindo as pegadas de Pe. Caffarel. Tentemos nos identificar com os vários personagens:
- com o sacerdote e o levita para evitar seus modos de reagir,
- com o samaritano para assumir o seu estilo
- mas também, e em primeiro lugar, com o desventurado: também o doutor da lei precisa de ajuda, também nós precisamos de ajuda; e quem será, então, o nosso bom samaritano? A parábola deixa intuir uma resposta que foi muito aproveitada nos primeiros séculos do cristianismo, pelos Padres da Igreja: o nosso bom samaritano é o próprio Cristo. É ele o primeiro que nos encontrou feridos e nos socorreu, ele, o Cordeiro que tira os pecados do mundo.
 
Tocamos aqui, então, no ponto mais profundo da nossa vida: se temos que ir ao encontro dos outros, desenvolver um serviço, é porque, antes, um Outro veio ao nosso encontro! E se como crentes queremos ter a força de sermos bons samaritanos, devemos meditar por muito tempo sobre quanto o Senhor Jesus fez por nós, o bom samaritano mandado pelo Pai.
 
Assim recita uma oração introduzida pelo Missal: É realmente coisa boa e justa louvar-te e te agradecer, Pai Santo, em cada momento da nossa vida, na saúde e na doença, no dor e na alegria, por Cristo teu servo e nosso Redentor. Na sua vida mortal, ele passou ajudando e curando todos aqueles que eram prisioneiros do mal. Ainda hoje como bom samaritano vem do lado de cada homem ferido no corpo e no espírito e derrama sobre as feridas o óleo da consolação e o vinho da esperança. Por este dom da tua graça, também a noite de dor abre-se à luz pascoal do teu Filho crucificado e ressuscitado.
 

Por isso, também nós, olhando o que nos espera, nos colocamos sob a proteção de Maria, mulher do futuro, para projetar em seu exemplo a nossa fidelidade a Deus.